Da terra de onde venho habituei-me a lidar com o Tejo de perto. Não como me relaciono com ele agora, em Lisboa, em que é mais mar que rio e pouco se vislumbra da sua verdadeira natureza; o Tejo de Lisboa é um rio distante daquele que recorta a Lezíria, que guarda Almourol e que atravessa as Portas de Ródão. Da terra de onde venho cresci com o sentido real do rio. Ali conheci as variações do caudal, as cheias do Inverno e as ilhas de areia. Conheci as correntes indómitas, a seca, as areias movediças e a poluição. Conheci as gentes que vivem do rio, pescadores, varinas, agricultores, camponeses e os mitos e ritos que testemunham a antiguidade da relação entre o Tejo e as comunidades. E lidar tão de perto com o rio levou-me a conhecer-lhe o espírito. A água.
Não há certezas sobre a origem da água. Dizem que pode ter chegado à Terra vinda dos cometas. Não deixa de me fascinar essa ideia da água como herdeira dos astros. Apesar das poucas certezas relativamente à sua proveniência, é ela a marca identitária do nosso planeta e, sem ela, a vida como a conhecemos não existiria. Por isso a água é uma das grandes questões deste século, desde a do oceano, infestada de plástico, às reservas subterrâneas ameaçadas pela sobreexploração, pela infiltração de químicos provenientes da agricultura intensiva e pela devastação da floresta autóctone.
No decorrer de 2019, foram várias as notícias que deram nota da escassez de água a montante do rio Tejo, assim como da poluição, que se mantém. E não só no Tejo, mas também no Alviela, no Nabão, no Zêzere, no Lis, no Douro, no Paiva, no Tua, no Sado. A lista de rios portugueses poluídos é interminável e a seca que atravessamos agrava ainda mais as condições da água. A seca é motivada pela ausência de chuva, que por sua vez é motivada pelo desaparecimento da floresta autóctone, que deu lugar às monoculturas de eucalipto e de pinheiro. No início de Janeiro, a Lusa noticiou que um terço de Portugal ainda se encontra em situação de seca. Já em 2017, a seca na península deu sinais preocupantes, com a nascente do rio Douro a secar por completo. O cenário repetiu-se no Outono de 2019.
Diante de um cenário como este, a questão da água será cada vez mais central nos próximos anos no nosso território, e o Estado português e o Estado espanhol revelam total incapacidade de lidarem com esse recurso que nos é tão vital. Comprovam-no as notícias que, ano após ano, dão testemunho das tensões entre ambos os Estados no que diz respeito à gestão da água do Tejo. Em Lisboa são questões que certamente passam ao lado de quem sempre vê água farta a passar na direcção do oceano. Não sabem o que vai “dentro do rio que corre/ em lágrimas até à foz”, como canta o fado. Mas para quem vive do rio todos os dias, para quem o vê coberto de espuma ou a reduzir-se ao caudal de um pequeno ribeiro, pescadores, varinas, agricultores, camponeses, é um problema central que coloca em risco não só estilos de vida e profissões, como também património cultural e imaterial, de que são exemplo as comunidades avieiras. E é um problema que coloca em risco, também, todos nós, pois a água profanada pelas descargas poluentes é a mesma que rega as plantações dos alimentos que temos à mesa na hora das refeições. Tudo na Terra é circular.
Por cada vez mais pessoas serem conscientes dessa circularidade, querendo encontrar soluções para os problemas do clima e da poluição, e face à incapacidade de os Estados ibéricos protegerem a Terra e as populações, há exemplos de cidadania de associações, colectivos e pessoas individuais que, através da doação do seu tempo, se têm organizado e dedicado a plantar árvores, a vigiar os rios, a denunciar os crimes contra a natureza nas redes sociais, a resgatar formas tradicionais de fazer agricultura e em harmonia com o ambiente ou a reduzir o lixo produzido. No fundo, pessoas que se têm dedicado a criar uma nova forma de viver em comunidade. Desalinhada com o poder e alinhada com os ritmos da Terra. Todos podemos contribuir positivamente para uma mudança efectiva no curso das coisas, apesar de o tempo que temos ser muito escasso.
As previsões de um estudo realizado por Joel Guiot e Wolfgang Cramer, do Centre National de la Recherche Scientifique, em França, apontam que a Península Ibérica poderá tornar-se num deserto até 2100, como uma continuidade do deserto do Sara. Face a um cenário tão desolador, tanto o Estado espanhol como o português deveriam estar empenhados em activar uma campanha de reflorestação da península, já que a floresta autóctone, além de reter água no solo – garantindo a continuidade dos aquíferos – é fundamental na formação de chuva, através da evapotranspiração. Mas os Estados, personificados nas figuras dos políticos que os mantêm em movimento, legislatura após legislatura, parecem mais empenhados em perpetuar a traição às comunidades e à Terra, aliando-se às corporações e facilitando a sobreexploração de recursos em detrimento da preservação da vida. Exemplo disso é o “esquecimento” do actual Ministro do Ambiente relativamente à taxa da celulose para o Orçamento de Estado de 2020. Maior atrevimento não poderia haver!
Chegados à promessa de uma nova década, depois de tudo o que se investiu em sensibilização para a preservação do ambiente, com a qual cresci nos anos 90 e 2000, sinto-me atraiçoado. Apesar de ser consciente dos crimes do capitalismo e dos seus senhores, não deixo de me sentir chocado com a facilidade com que uma minoria no planeta tem escolhido o lucro em vez da manutenção da vida. Em determinado momento da História houve tempo para reverter as alterações climáticas, houve tempo para agir. Agora já não há. E podem fazer cimeiras, encontros, debates, o que quiserem. O tempo passou. Ou mudamos ou mudamos.
E mesmo com todas as mudanças que fizermos, a minha geração, e as gerações que vieram e virão depois de mim, tem o futuro na Terra hipotecado. Não sabemos se teremos rios e água para beber, não sabemos se teremos florestas e oceanos geradores de oxigénio, não sabemos se teremos terras férteis e saudáveis que gerem alimentos. Não sabemos. E apesar de não sabermos, de ninguém saber, a inoperância dos órgãos governativos e de grande parte da sociedade civil é tão profunda que não acredito que se actue enquanto o Tejo passar com água em Lisboa. Afinal, o rio na capital é o espelho de Narciso, devolvendo continuamente à cidade a sua própria imagem e a dos senhores do poder que nela habitam, enquanto a sombra da morte se vai abatendo sobre nós.
Resta-me fazer a minha parte, o máximo e o melhor que eu conseguir, aliando esforços a quem também já escolheu actuar. E enquanto vou contribuindo com a minha parte para a mudança, olharei os astros, na esperança de que nova água e nova vida venham das estrelas.