No último post que escrevi falava no mundo rural.
Na verdade, utilizar o conceito de mundo rural é entrar num mundo de enganos.
No post anterior falei apenas dos enganos que dizem respeito à diferença entre o mundo rural concreto e o mundo rural idealizado pela esmagadora maioria das pessoas.
Agora gostaria mesmo de falar da ideia de mundo rural, como oposição ao mundo urbano.
Os tecnocratas, avisadamente, vão escolhendo usar jargão técnico – territórios de baixa densidade – para fugir ao caos de significados que a expressão “mundo rural” desencadeia.
A ideia de urbano e rural tem uma base histórica relativamente simples: havia os que produziam alimentos e fibras, espalhados pelo mundo em função do potencial produtivo das paisagens, e havia os que viviam de uso posterior desses alimentos e fibras, prestando serviços de segurança, justiça, comércio e troca de informação, concentrando-se em aglomerações de pessoas que potenciavam as trocas sociais de que viviam.
Uns tinham uma cultura rural associada à produção de alimentos e fibras, de maneira geral vincadamente local e regional, outros tinham uma cultura urbana, associada a relações sociais mais complexas e diversas, de maneira geral mais cosmopolitas.
O mundo que criou estas diferenças de cultura desapareceu, e onde facilmente havia 60% ou 70% da população dedicada a actividades produtivas autónomas no sector primário, há hoje menos de 5%, como em Portugal.
Para usar um exemplo onde essas contas são relativamente fáceis de fazer, na fileira do eucalipto, nas empresas mais eficientes a produzir rolaria de eucalipto – as empresas de celulose – há verticalização económica de tal forma que estas empresas que produzem rolaria de eucalipto produzem também pasta e, a maior delas, em Portugal, produz ainda papel.
O essencial para que queria chamar a atenção é que por cada unidade de valor produzida na exploração florestal, há umas nove unidades de valor na sua transformação em pasta e outras nove unidades de valor na produção de papel, o que quer dizer que, para o accionista, a produção florestal só interessa na medida em que garante o abastecimento das fábricas, visto que, no conjunto da empresa, o que se ganha na produção florestal são trocos, quando comparado com o que se ganha na transformação industrial.
E isso é verdade para quase toda a produção actual de alimentos e fibras.
O que ganha o produtor de leite em relação ao café que vende meias de leite, ao supermercado que vende pacotes de leite, ao industrial que produz manteiga, queijo e natas, ao restaurante que vende sericaia, etc., é mínimo.
Não admira por isso que uma das principais fontes financeiras desses “territórios de baixa densidade” seja a Segurança Social, e não a produção autónoma de riqueza.
E se, por qualquer razão, o preço dos alimentos sobe qualquer coisa, logo o Estado alinha com os consumidores (esmagadoramente urbanos) contra os produtores, para que seja impossível ficar milionário a produzir leite: a sociedade considera normal a venda de software para as máquinas de ordenha com margens alargadas, mas imoral a venda de alimentos com margens confortáveis para os produtores, com excepção dos produtos de nicho.
O resultado é muito claro nos programas das televisões que enchem os horários de Domingo à tarde, aqueles em que equipas de produção viajam de terra em terra, a mostrar exotismos, peças de museu, corruptelas de etnografia e restaurantes de fine dinning que resconstroem tradições: mesmo no país mais “rural”, as culturas urbanas são esmagadoramente dominantes.
Os que hoje produzem e vivem da produção primária só têm espaço na comunicação de massas se produzirem para nichos urbanos da moda, ou se forem o alvo de indignações várias: contra a produção intensiva de milho, contra o regadio, contra o olival intensivo, contra a produção de leite, contra a amêndoa regada, contra o abacate, contra o eucalipto, contra tudo o que seja verdadeira criação de riqueza através da produção primária em larga escala.
Para a esmagadora maioria de nós, o olival tradicional é fantástico e tem estado a ser substituído por olival intensivo por causa da ganância dos produtores agrícolas, não porque nós exigimos preços baixos que só são possíveis com formas de produção muito eficientes.
A inacreditável confusão sobre um corte de madeira na serra da Lousã oferece uma visão condensada do assunto.
Uma empresa madeireira está a cortar madeira e uma empresa de turismo não está de acordo. Há um litígio entre as duas por questões de propriedade (um problema velho como o mundo, sempre muito presente no mundo rural clássico, só ultrapassado, em importância, pelos litígios decorrentes do uso da água).
Inevitavelmente, a câmara da Lousã alinha imediatamente pelo turismo contra o corte de árvores – note-se, não é o corte de uma mata reliquial como a Margaraça, é mesmo o corte de pinheiros que foram plantados ao fim de uns anos, numa operação perfeitamente banal de produção de madeira – o que se compreende facilmente: os eleitores do munícípio da Lousã não vivem, na sua maioria, da produção primária, têm vidas completamente urbanas nas quais a oposição ao corte das árvores é um valor muito mais presente que a a actividade florestal produtora de riqueza que, evidentemente, implica cortes de árvores periodicamente.
De resto, estes eleitores acreditam muito mais no turismo como fonte de riqueza que na produção primária.
A empresa de turismo, que se apresenta como uma empresa de regeneração de paisagens, ligada à permacultura e outras fantasias new age, sabe que uma disputa sobre a propriedade da madeira não interessa a ninguém, de maneira que usa ideias românticas de conservação da natureza, restauro de paisagem, e pseudo-ciência de gestão de recursos naturais para chegar ao espaço mediático e arregimentar apoios (e, já agora, notoriedade para o seu negócio).
Jornalistas, associações de defesa do ambiente, personalidades, etc., todos eles com vidas e culturas urbanas (como a minha), mordem rapidamente o isco e desatam a repetir inanidades sobre figuras de protecção dos recursos, da directiva Habitats à Reserva Ecológica Nacional, mais os malefícios dos cortes rasos, e a erosão, e as cheias e o diabo a quatro, tudo matérias sem qualquer relação relevante com o que está em causa: a opção pela produção primária e a criação de riqueza através na normal exploração florestal, em detrimento da opção por vender camas turísticas à boleia da ideia de regeneração da paisagem.
O mundo rural, aquele que vive da produção primária, é hoje ultra-minoritário, mesmo dentro dos concelhos a que chamamos rurais.
E a verdade é que esse mundo, o mundo da produção primária, não tem representação política nem voz socialmente audível, apesar de ser representado por muitas organizações, tão urbanas como o resto de nós, que centram a sua actividade na maximização da fatia de apoios públicos a que podem aceder, legitimamente, não representando uma forma de vida que hoje é socialmente invísivel, excepto como saco de pancada.
O artigo foi publicado originalmente em Corta-fitas.