A seca, o aumento dos custos das matérias-primas, as alterações das regras da PAC, a incerteza quanto ao futuro das exportações de animais vivos, a pressão de uma opinião pública desconhecedora e esmagadoramente urbana, a inflacção e a consequente diminuição do poder de compra, um poder político distante e sem preocupação com o mundo rural e os produtos supostamente alternativos à carne (seja de origem vegetal, seja de produção laboratorial) são alguns dos principais factores que tornam a produção de bovinos de carne incerta, desafiante e, sobretudo, economicamente arriscada.
A descrição exaustiva de todos estes factores seria, para além de desadequada, cansativa, mas a sua enumeração reflete os desafios que o sector da bovinicultura de carne enfrenta e que não são mitigados pelos aumentos de preços verificados este ano. Ainda assim, vale a pena uma reflexão mais profunda sobre alguns destes pontos que, pela sua particularidade, serão mais do que conjunturais, decisivos na evolução do sector.
Fruto das alterações climáticas, os períodos de seca serão mais frequentes e mais prolongados, atingindo com particular severidade um sector baseado no extensivo e que, para tal, terá de se adaptar, seja através da selecção de animais mais eficientes (igualmente importante pela componente económica e ambiental), seja pela procura de alternativas alimentares, seja por investimentos no aumento da capacidade de armazenamento de água e alimento que permita mitigar os períodos como o que actualmente vivemos. Segundo o IPMA, no passado mês de Maio, 35% do território encontrava-se em seca severa ou extrema, tendo sido o 8º mês de Maio mais quente desde 1935 (o valor mais alto foi registado em 2022). De referir também que nos últimos 7 anos os valores de precipitação têm sido sempre inferiores à média registada entre 1971 e 2000 e que o ano agrícola 2021/22 (entre 01/11/2021 e 31/10/2022) foi o mais quente e o terceiro menos chuvoso desde 1931.
Esta seca e a consequente diminuição de alimento disponível, conjugada com um aumento brutal dos preços dos alimentos (dos quais os valores record da palha são o melhor exemplo), obrigou muitos produtores a abaterem parte dos seus efectivos e a diminuírem drasticamente, ou mesmo eliminar, a recria. A situação é comum a todo o centro e sul peninsular, tendo a comunicação social espanhola dado nota dos aumentos brutais dos abates no passado mês de Maio.
Para além das consequências imediatas que uma oferta demasiado brusca de carne provoca no mercado, as consequências serão sentidas sobretudo no futuro, com uma diminuição do número de animais disponíveis nos próximos anos e o aumento ainda maior da, já de si insustentável, dependência de carne do exterior. Apesar do aumento de produção verificado em 2022 (+3,1%), a produção nacional de carne de bovino, a mais deficitária das principais espécies, correspondeu apenas a 59,4% das necessidades do mercado. Com os abates verificados recentemente, o custo dos factores de produção e a baixa disponibilidade de alimento, estes valores serão significativamente piores no próximo ano, desequilibrando ainda mais a balança comercial e levando a uma maior dependência do exterior que, não só é má em termos económicos, como leva a uma perda de capacidade de influência do sector nacional.
A este cenário acresce o risco de perda de alguns mercados relevantes. A exportação de animais vivos tem sido uma boa alternativa comercial para muitas explorações multiplicadoras, mas a pressão social quer na origem, quer no destino, comprometem o futuro destes mercados. As manifestações contra o transporte de animais vivos não são exclusivas da Europa, bastando uma rápida pesquisa para perceber que a pressão é igual ou maior nos mercados de destino, nomeadamente em Israel. A capacidade de mobilização dos movimentos animalistas é, como sempre, muito superior à do sector agrícola e os números são explícitos: das 59.281 pessoas que contribuíram para a consulta pública sobre a revisão da legislação do bem-estar animal, 94% consideraram que a exportação de animais vivos para países fora da União Europeia devia ser proibida. Perante este cenário, os partidos políticos começam a ceder à opinião pública e Alemanha, Áustria, Dinamarca, Luxemburgo e Países Baixos já se mostraram favoráveis às restrições ao transporte. Portugal e outros países europeus têm defendido a sua manutenção, mas a margem de negociação será cada vez menor.
Por outro lado, a exportação alternativa de carcaças que, para além da resolução do problema de transporte poderia significar uma mais-valia económica, levanta sérias questões no que diz respeito às exigências religiosas. Quer o abate Kosher, exigido pelos ritos judaicos, quer o abate Halal, pelos muçulmanos, não são compatíveis com as exigências de bem-estar animal, tendo inclusivamente alguns Estados-Membros da União Europeia já proibido esta prática.
A bovinicultura de carne desempenha um papel fundamental a nível económico, social e ambiental, contribuindo para a fixação de populações nos meios rurais, a preservação da paisagem, de ecossistemas e a ocupação de áreas marginais que, sem bovinos, seriam provavelmente deixadas ao abandono, aumentando o risco de incêndios e desertificação. É urgente uma intervenção no sector que conjugue os diversos intervenientes da cadeia, do poder político às organizações de produtores, que permita a sua organização e aumente assim a sua capacidade de resposta a uma conjugação de factores que, caso contrário, o condenará à irrelevância.
Pedro Santos Vaz
Zootécnico