Não obstante as dificuldades do nosso rural tardio envelhecido, quero crer que a transição digital em curso é uma oportunidade única em direção à 2ª ruralidade, o universo rural da sociedade da informação e do conhecimento. Num país tão pequeno, com uma profusão de instituições de ensino superior e escolas profissionais espalhadas pelo território e um volume imenso de meios financeiros à sua disposição até 2030, seria um crime de lesa-pátria e uma demonstração insuportável de incompetência coletiva não aproveitar esta oportunidade única para modernizar o nosso universo rural em todas as suas dimensões.
Sabemos que o universo socio-corporativo do rural tardio português atravessa uma crise existencial significativa na busca do seu próprio caminho para a sociedade da informação e do conhecimento. A transformação tecnológica e digital deste universo é um desafio de elevada complexidade. Basta, para tanto, lembrar a forte diferenciação dos subsistemas de agricultura que o compõem, desde a micro e pequena agricultura de subsistência, até à agricultura super intensiva de exportação, com passagem pelas diversas agriculturas de base ecológica e biológica e as suas dinâmicas próprias de envelhecimento, rejuvenescimento e modernização. Vejam-se, por exemplo, os últimos números no retrato feito recentemente pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, em especial a queda dos pequenos agricultores singulares de 400 mil em 1989 para 274 mil em 2019 e a subida do nº de empresas e sociedades. Perante tal diversidade, faz sentido a pergunta: a transição digital aumenta a discriminação e reduz aquela diversidade ou, pelo contrário, adapta-se às várias velocidades e melhora o desempenho de cada subsistema se, para tanto, existirem agentes e atores em condições de protagonizar a transição em cada um daqueles subsistemas?
Não é fácil responder a esta pergunta, mas as plataformas digitais colaborativas, descentralizadas e distribuídas, geridas de forma associativa, cooperativa, comunitária ou privada podem, talvez, fazer a quadratura do círculo e adaptar-se às dinâmicas próprias de cada subsistema agrícola e, mesmo, promover a sua conexão e interligação para uma melhor inteligência coletiva territorial. As condições de formulação do problema já são conhecidas e são muito severas. Temos, de um lado, os impactos das sanções da guerra e da inflação, o pacto ecológico europeu e as novas métricas de sustentabilidade que lhe correspondem, do outro, o nosso plano específico da PAC (PEPAC) para realizar e na sua retaguarda toda a política de coesão em sentido amplo que deve prevenir e acautelar os efeitos externos negativos da política agrícola numa determinada região e, assim, não lamentarmos que se tenha reduzido a tomar medidas reativas de mitigação e remediação.
É neste contexto de realização do PEPAC e da política de coesão territorial que se deve integrar o conceito operativo de plataforma colaborativa e embora saibamos que não há nenhum determinismo tecnológico ou digital que nos seja imposto pelas plataformas existem algumas dificuldades de percurso que condicionam o nosso caminho.
Em primeiro lugar, há um défice de colaboração entre os agentes principais, as associações socioprofissionais representativas, as direções regionais de agricultura e as delegações do instituto da conservação, natureza e floresta, as associações de desenvolvimento local (ADL) e as comunidades intermunicipais, as escolas superiores agrárias e as escolas profissionais agrícolas e uma imensidão de serviços públicos e privados de aconselhamento, extensão e investigação, para além, evidentemente, das grandes confederações e suas delegações regionais com tarefas mais especificas de lobbying político e institucional.
Em segundo lugar, e como corolário, o défice de meta dados relevantes que são necessários para fazer o rescaling das operações de modernização do mundo rural. Refiro-me, em particular, ao modelo de arquitetura digital para recolha e tratamento de dados relativos ao planeamento de recursos para a produção agrícola e as atividades circulares no mundo rural, mas, também, ao modelo de extensão rural e ao compromisso colaborativo entre a diretoria dos serviços públicos regionais, a assessoria dos operadores privados e a curadoria dos bens comuns e comunitários.
Em terceiro lugar, o défice de medidas inovadoras e disruptivas em matéria de incentivo aos jovens empresários, em especial, a atração de jovens recém-formados, nómadas digitais e neorurais para o universo da 2ª ruralidade, mas, também, novas modalidades de investigação-ação e formação da população ativa nas áreas mais sensíveis da agricultura de precisão, silvicultura preventiva e arquitetura paisagista.
Nota Final
Uma nota final para a proliferação e coabitação das plataformas e aplicativos no quadro da 2ª ruralidade e sua potencial interoperabilidade. Para termos uma ideia da variedade desta informação de base basta elencar aqueles serviços que podem ser oferecidos no quadro regional: os serviços ambulatórios de proximidade/envelhecimento ativo, bancos de alojamento local e turismo rural, recolha de resíduos orgânicos e compostagem, agricultura periurbana e circuitos curtos de comercialização, serviços de animação turística, serviços de saúde ambulatória, serviços técnicos de agricultura de precisão, serviços de marketing territorial e certificação, serviços agroflorestais e agro paisagísticos, plataformas de compra e venda de bens e serviços (marketplaces), plataformas de formação profissional e outsourcing, plataformas de crowdfunding e financiamento participativo, plataformas de serviços veterinários e bem-estar animal, serviços digitais de suporte às metaplataformas.
Neste contexto, os novos formatos socioinstitucionais e organizacionais são fundamentais. Refiro os clubes de produtores e as cooperativas, os condomínios de aldeia, as zonas de intervenção florestal e as áreas integradas de gestão paisagística, as áreas de paisagem protegida como os parques naturais, os geoparques e as zonas termais, os centros operativos tecnológicos e os laboratórios colaborativos, as associações de desenvolvimento local e as comunidades intermunicipais, entre outros formatos. Perante o impacto devastador das alterações climáticas serão estes formatos socioinstitucionais e organizacionais que, em última instância, irão informar e promover a reconfiguração do sistema operativo dos sistemas-paisagem, mosaicos paisagísticos e territórios-rede e suas plataformas colaborativas através de uma geoeconomia ajustada a cada mosaico, ao seu plano de infraestruturas e corredores ecológicos, aos sistemas produtivos locais, às amenidades paisagísticas e recreativas, ao dispositivo de gestão de riscos e ao plano de provisão dos serviços de ecossistema. São os nossos votos e a nossa esperança.
Professor Catedrático na Universidade do Algarve
Do rural tardio português até à 2ª ruralidade – O mix agro rural de fins múltiplos