Gonçalo Lobo Xavier fala no aumento de preços que, no seu entender, não está diretamente ligado ao início da guerra na Ucrânia, uma vez que as subidas começaram antes.
Para o presidente da APED – Associação Portuguesa de Empresas de Distribuição – é expectável que as subidas continuem e aponta para aumentos na ordem dos 30%. O responsável diz que «o Governo tomou algumas medidas em boa hora» mas, ainda assim, entende que são insuficientes. Gonçalo Lobo Xavier não está com grande expectativa em relação ao próximo Orçamento do Estado e justifica: «Não é por ter mudado de João Leão para Fernando Medina que vamos ter um Orçamento totalmente diferente daqueles que têm sido apresentados». Fala dos problemas de falta de mão-de-obra do setor e garante que «não podemos pensar no imediato que os refugiados vão ser a tábua de salvação no mercado de trabalho».
Contamos com uma seca, uma guerra e enfrentamos ainda uma pandemia. Que impactos é que estas situações têm no setor?
É preciso esclarecer algumas coisas relevantes. A APED representa 168 associados do retalho alimentar e não alimentar e, desses, 60 são do retalho alimentar. Não nos podemos esquecer que tudo o que está a acontecer na economia do ponto de vista macro tem um impacto em todo o retalho e estes aumentos de preços, embora tenham níveis de impacto diferentes – no alimentar ou no especializado – os consumidores vão sentir isso de alguma forma. Em segundo lugar, já disse isto recentemente, mas vou explicar melhor: é expectável para os próximos meses que os preços dos bens alimentares aumentem na ordem dos 30%. Isso é uma realidade que é verificada, neste momento, em Portugal mas em toda a Europa. Este aumento na ordem dos 30% são dados da OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico], que se baseiam na análise macro e económica do espaço europeu mas também nas tendências dos últimos seis meses. Este crescimento dos preços não está diretamente ligado ao dia 24 de fevereiro, ao início da guerra na Ucrânia. É um movimento de crescimento de preços e dos fatores de produção que já se verifica nos últimos seis, sete meses, conjugado com a inflação – que naturalmente também está associada a este crescimento dos custos e está a provocar esta desorientação no mercado, com efeitos naturalmente nos preços e na bolsa dos consumidores.
Há sete meses que se assistia a este aumento de preços. Deve-se a quê? Na altura não havia guerra, nem a inflação estava nestes patamares…
Nos últimos sete meses já estávamos a assistir a crescimentos nos custos na área da energia, do gás ou combustíveis fósseis. De dezembro para cá houve um crescimento exponencial. Só em fevereiro é que o INE [Instituto Nacional de Estatística] vem identificar um valor de inflação quase na ordem dos 5%. Este aumento dos custos dos fatores de produção tem a energia à cabeça mas com a energia vem também a questão dos transportes das mercadorias, o aumento dos custos de produção na área alimentar, devido às rações e escassez de matérias primas que decorrem do próprio desajustamento do mercado na área dos cereais. Os cereais já estavam a aumentar há bastante tempo, mas com a perda do mercado ucraniano, houve aqui um incremento muito grande. Conclusão: os custos dos fatores de produção têm vindo a aumentar, a escassez de algumas matérias primas tem vindo a ser uma realidade, a questão da seca veio também complicar ainda mais a vida dos portugueses – particularmente da produção agrícola nacional – mas há uma coisa que posso garantir e posso continuar a afirmar: neste momento, apesar destes constrangimentos todos, não temos, no nosso horizonte, qualquer risco de ruptura de produtos. Não há ruptura de produtos quer na produção nacional quer mesmo nos produtos – porque Portugal não é autossuficiente em todas as áreas – de importação.
Mas se a situação se prolongar corremos esse risco?
Esperemos que o conflito termine o mais depressa possível e seria desajustado e imprudente da minha parte, enquanto diretor-geral da APED, fazer projeções a mais de dois, três meses. A verdade é que para os próximos dois, três meses não temos indicação por parte dos nossos retalhistas de sinais de preocupação. Mesmo o que se passou recentemente em Espanha com a greve dos motoristas e dos diversos boicotes, não tendo um efeito direto, provocaram alguns constrangimentos e atrasos na entrega de mercadorias nos nossos espaços de retalho alimentar, que foi rapidamente absorvido e reajustado. Mas houve um período, há cerca de duas semanas, de um movimento por parte de alguns consumidores no sentido de açambarcarem literalmente o óleo de girassol. Houve uma ligeira corrida a algumas lojas. Não que tivéssemos falta de stock, não que houvesse risco de ruptura mas, de repente, passámos, em algumas lojas, de vendas diárias de 100 litros para vendas diárias de 500 litros de óleo de girassol. Foi numa lógica de prevenção que alguns dos associados da APED decidiram limitar a venda por cliente para haver um acesso mais democrático deste produto que não é essencial a todos os portugueses.
E também subiram os preços…
O preço tem aumentado, mas não é de agora. Em dezembro, os nossos fornecedores apresentaram-nos as tabelas de preços para aplicar em janeiro e fevereiro e já tinham incrementos na ordem dos 10 ou 15%, ou seja, já estavam a fazer refletir no preço este incremento dos custos. Dir-me-ão que o preço já está a aumentar em muitos segmentos. É verdade. Este é o ajustamento que temos que fazer em face ao aumento do custo de produção. A produção vende mais caro à indústria, a indústria vende mais caro à distribuição. E por muito que façamos do ponto de vista da eficiência, da logística, para comprar bem e gerir bem os stocks sabemos que o retalho alimentar é essencialmente um negócio de eficiências. Não é um negócio de margens muito grandes. Está estudado, temos vários estudos do EuroCommerce, que indicam as margens médias no retalho alimentar são na ordem dos 2 ou 3%. Claro que para ter essa margem média há produtos que têm 15% e outros 1%, o que é um negócio de muito volume. E isso implica que todas as empresas, todos os retalhistas façam um esforço muito grande pela competitividade para apresentar o preço melhor, mais competitivo, ao cliente.
No caso do óleo de girassol, assistimos quase a uma duplicação de valor. Passou praticamente de 2 para 5 euros.
E porquê? O que aconteceu não foi porque houve uma escassez de produto. Claro que houve falta de produto porque a matéria-prima, o óleo de girassol, vinha na ordem dos 30, 40%, da Ucrânia e de repente ficámos sem essa fonte. É fácil perceber que todo o mercado europeu teve de se reajustar para ir à procura de outra fonte de matéria-prima. E onde é que elas estão? Na África do Sul, na América do Sul. A China tomou de imediato perto de 90% da produção de cereais da Argentina.
Agora estamos perante o açambarcamento do óleo, mas na pandemia vimos o mesmo no caso do papel higiénico. É uma questão cultural?
Não. Quer a questão do papel higiénico que começou na Austrália e se alastrou para o resto do mundo, quer a questão do óleo de girassol que, por acaso, começou em Espanha são fenómenos que estão relacionados com comportamentos irracionais e com os medos por parte do consumidor. Basta ver o que acontece quando surge a notícia de que vai haver um aumento de 30 cêntimos no gasóleo, em que no fim de semana anterior há uma quantidade de portugueses que passa horas numa bomba para abastecer. Mesmo que seja legítimo que o façam, é uma atitude de algum fenómeno de massas. Não sei se faria sentido do ponto de vista académico que se fizesse um estudo por parte de alunos de mestrado ou doutoramento sobre o que levou as pessoas a açambarcarem o papel higiénico. Mesmo que as pessoas digam que viram prateleiras vazias, nunca faltou papel higiénico, apesar de um aumento do consumo absolutamente inusitado. Conclusão: os meus colegas da reposição não estavam a conseguir repor ao ritmo que o consumo estava a ser feito. Há dias, João Vieira Lopes da CCP [Confederação do Comércio e Serviços de Portugal ] dizia: ‘Suspeito que vamos ter uma geração que quando morrer deixa uns bens aos filhos e uma palete de papel higiénico’. Neste momento, não há nenhuma perspetiva de ruptura de produtos, nem nos parece que vá acontecer algo semelhante nos próximos meses.
Admitiu que poderíamos recorrer a outros mercados para contornar a falta de matéria-prima, mas isso não se irá refletir nos custos por causa da distância?
Neste ajustamento entre ter deixado de haver matéria-prima e a indústria ter de ir procurar outras fontes de matéria-prima, com certeza bastante mais caras, os próprios custos de transportes ficaram muito mais caros. Trazer um contentor de produtos ou de matéria-prima da China, em pouco mais de um ano, passou de 1.500 dólares para 15 mil dólares. É evidente que o tráfego marítimo – e isso teve muito a ver com pandemia – tomou uma proporção em termos de custos que é impossível não transferir para o preço final. Se analisarmos toda a cadeia de valor vemos que está tudo a impactado. Daí a tendência é que haja um crescimento dos preços finais na ordem dos 30%. Não é hoje. Não é amanhã. É nos próximos dois, três meses que vamos a assistir a um incremento do custo dos produtos alimentares fruto da conjugação de inflação, de crescimento dos custos dos fatores de produção e, naturalmente, os próprios fornecedores tiveram que se acomodar a estas realidades.
A par dos contentores, o preço dos combustíveis não ajuda…
Aparentemente o Governo tomou algumas medidas em boa hora, mas do nosso ponto de vista são insuficientes. Claramente a questão de baixar o IVA dos combustíveis é uma matéria essencial para a competitividade das nossas empresas e da nossa economia. Já alguns Estados-membros na Europa o fizeram, não esperaram pela autorização da União Europeia. Parece-me que a União Europeia até tem reagido com bastante celeridade às dificuldades destas crises nos últimos tempos. Verificamos isso na política de coesão, aliás há um dossiê que é gerido pela nossa comissária Elisa Ferreira, em que foram desbloqueadas verbas importantes e foram alargados os prazos de execução dos vários financiamentos que vão ter impacto para mitigar as dificuldades das empresas. O caso dos transportes é paradigmático. As empresas de transporte – em Portugal há algumas com dimensão considerável – na sua maior parte são relativamente pequenas, com frotas que são sustentadas nos vários contratos que vão celebrando com empresas do retalho mas também com outras empresas da indústria, etc. É fácil perceber que numa frota de seis, sete camiões, uma flutuação de preços semanal com 20 ou 30 cêntimos para cima e para baixo, num depósito de mil litros são 300 euros. Ora, 300 euros, em seis ou sete camiões, é evidente que vai ser muito difícil para aquela empresa de transportes que já firmou um contrato a mais de um mês com uma empresa para fornecer os seus […]