[Fonte: Dinheiro Vivo]
Numa altura em que o país tenta recuperar das trágicas notícias que chegaram de Pedrógão Grande, a reforma das florestas é o tema central na conversa com o ex-governante António Serrano, hoje gestor e professor na Universidade de Évora.
O primeiro-ministro já disse que a reforma da floresta está há muito adiada. Porque acha que chegámos a este ponto?
Este tema é vital para o país e é necessário encarar a floresta como o grande ativo económico que o país tem e que pode criar valor para todos, sociedade e agentes económico e sociais, com todos os benefícios que a floresta propicia ao nível de produção de bens públicos. Mas a reforma profunda da floresta tem sido adiada porque a sociedade nunca teve bem a noção daquilo que é necessário fazer. É uma tarefa hercúlea, não é fácil. E provavelmente é necessário intervir em áreas de algum conforto e mexer com interesses.…
Foi a sociedade ou foram os políticos que não tiveram essa consciência?
A sociedade integra todos nós. Os políticos têm uma responsabilidade acrescida dentro da sociedade, porque têm mandato para, em nome dos contribuintes e das pessoas que os elegem, desenvolver políticas que beneficiem toda uma sociedade. É necessário encontrar o momento para intervir de forma mais estruturada numa reforma mais profunda da floresta. Sempre defendi que é necessário fazê-lo, o primeiro-ministro com certeza que defende o mesmo, mas é preciso concebermos a floresta enquanto um ativo que cria valor para a sociedade. Em vez de partirmos da legislação à medida, vamos é partir do território, fazer o diagnóstico do território abandonado, do problema demográfico e do envelhecimento da população. Este diagnóstico é factual, é real e há indicadores que o demonstram, que nos levam a olhar para outras dimensões.
E o diagnóstico está bem feito?
Julgo que sim, nós temos hoje indicadores, que são produzidos até pelas estatísticas que o INE publica, e que dizem qual é a ocupação do território e até qual é o uso dos solos. Sabemos que a floresta ocupa 35% do território, sabemos que só 24% está dedicado à agricultura e 22% são pastagens e mato. Sabemos a população que reside em cada localidade, onde estão os mais velhos e onde falta população. Nestes incêndios está bem patente que tipo de população temos ali e a dificuldade que eles têm de lidar com um fenómenos desta natureza. Sabendo que não é possível trazer as pessoas novamente para o interior, porque elas saíram por várias razões, como a procura de melhores condições de vida, temos de encarar, de forma muito direta, como é que nós nos podemos substituir a essa medida.…
A reforma é urgente. Então não pode demorar muito tempo, como o primeiro-ministro diz que demorará, ou pode?
Depende do que estivermos a falar. Se olharmos para as espécies que são plantadas e as quisermos alterar,… sabemos que temos predominância de eucalipto, que tem à volta de 800 mil hectares, depois o pinheiro, que representa 700 e tal mil hectares, e o sobreiro, que é uma espécie resistente e que ocupa também 700 e tal mil hectares. Se quisermos reorientar e alterar o peso das espécies, não se faz de um momento para o outro. Há outras políticas, por exemplo, que demoram: se optarmos definitivamente por fazer o cadastro, é preciso ter verba, orçamento em cada ano e que garanta que o conseguimos fazer. Nunca foi possível encontrar formas de financiamento que permitissem, num conjunto de anos, completar o cadastro rústico em todo o país. Começámos com projetos-piloto, mas nunca os desenvolvemos. E no Centro Norte é fundamental, porque é onde há minifúndios. Se quisermos ter medidas de fomentar o emparcelamento, aumentando a dimensão média da propriedade, também demora tempo. No emparcelamento é preciso financiar. E como é que se financia, quem paga? Há outras medidas mais rápidas? São operacionais, todas importantíssimas que se façam. Mas o problema não está aí, está no espaço onde não há alguém que faça. Há uma zona imensa do território com proprietários ausentes.
Parte da solução passa também por atacar a desertificação?
Exatamente. O meu ponto é justamente esse: temos de contrariar este movimento de desertificação, e é claro que isso não se faz de um momento para o outro.
E o que é que se faz de forma rápida?
Já pensei e escrevi sobre este tema: é fazer uma nova geração da intervenção florestal; conceberam-se as zonas de intervenção florestal [ZIF] a seguir aos incêndios de 2003, salvo erro, que é um conceito interessante, e teve ali uma aceleração, e depois, por dificuldades orçamentais, não foi possível desenvolver. Mas é preciso pensar nesse modelo, renová-lo, trazer novos agentes para dentro dessas zonas de intervenção, fazer um plano de negócio de como é que poderemos tirar rentabilidade para quem participa nessas estruturas, e essas entidades têm de gerir e cuidar do território. É fundamental para nós, enquanto sociedade, garantir que este território é cuidado. Ocupado, era o mais desejável, se conseguíssemos num prazo interessante, mas isso é o momento seguinte. Se tiver atividade económica, garanto que há população interessada em procurar essa zona rural.
Temos de pensar ao contrário: como é que conseguimos pegar no nosso território e garantir que ele pode ser uma alavanca de desenvolvimento económico, incluído nestes espaços abandonados?
Se conseguirmos fazer isso, invertemos a situação. Já temos quem trate da floresta, quem olhe para o rendimento que se pode tirar dela.
Que importância tem hoje este petróleo verde para a economia?
As fileiras florestais e todo o negócio em torno da floresta devem representar, em termos de contributo para o PIB, à volta de 2% a 2,5%; um contributo para as exportações em torno dos 10%, incluindo aqui a pasta de papel, mobiliário, cortiça. Estas fileiras mais organizadas tiram a maior rentabilidade da floresta.
Mas há muitas atividades geradoras de valor que podem ser desenvolvidas, e se as maiores ganham dinheiro com a floresta, porque é que outros não podem ganhar?
E o ponto é esse. Temos de partir da questão: como é que podemos introduzir atividade económica dentro da floresta? E aí já conseguimos trazer pessoas, movimento, e exigir que seja cuidada. De outra forma, parece-me difícil.
Aprenderemos a lição desta vez? Se não for agora, quando será?
Depois de morrerem 64 pessoas numa tragédia inimaginável, se não nos unirmos aqui, todos, quando será? Tem de ser agora. E não pode ser apenas nesta altura. Devemos aproveitar este momento para não parar e pararmos só quando tivermos soluções estruturais no terreno. Não podemos apenas discutir o território e as florestas quando há incêndios, e essa tem sido a tradição. Isso tem-nos condicionado e limitado, porque depois quando se discute sobre incêndios há muita demagogia, muito aproveitamento de natureza política, por quem está sobretudo na oposição, esteja quem estiver no governo, e a pior coisa que há nestes momentos é ver aproveitamento político ou pensar como com a desgraça alheia se pode ganhar dividendos, ao invés de estarmos todos empenhados na procura de soluções a apresentar propostas. E, de uma forma geral, já todos [os partidos] tiveram a responsabilidade nestes ciclos após a revolução [de 1974], e ainda agora temos partidos mais à esquerda que estão a apoiar uma solução. Então, é bom dizer que isto não é de uns nem de outros, a responsabilidade é de todos nós. Há um professor que foi membro do governo e que escreveu um livro sobre a floresta portuguesa, o petróleo verde, e isso é mesmo uma realidade. E é bom tomarmos consciência disso: não temos petróleo, mas temos a floresta. Um dos focos de tensão tem que ver com os eucaliptos. O governo prometeu travar a plantação por ser uma árvore altamente inflamável, mas a indústria de pasta de papel diz que a produção nacional é insuficiente e é preciso importar.
Na sua opinião é preciso procurar equilíbrio, cortar o mal pela raiz?
Seria uma desgraça grande, a somar a outra desgraça, combatermos uma atividade económica altamente rentável e que traz benefício económico para o país, no PIB e nas exportações. Isso seria uma desgraça, e precisamos de tudo menos disso. É fundamental um equilíbrio e estabelecer mosaicos adequados que garantam corredores de fitossanidade do ponto de vista da gestão do território para impedir que criem corredores que evitem propagação fácil. Tudo isso pode ser feito sem pôr em causa a atividade económica. Acho até que há aqui algum dogma em torno dessa espécie.
Diaboliza-se o eucalipto?
Acho que se diaboliza o eucalipto porque a grande parte dessa espécie, como outras, está abandonada.
Nessas espécies, quando estão geridas, não há incêndios graves. Então o diabo não é o eucalipto, mas o abandono?
O diabo está exatamente no abandono, na falta de instrumentos para intervir no território. Esse é o nosso problema. E se não estiver lá o eucalipto, está lá outra coisa que será abandonada se mantivermos a mesma prática. Não se propaga tão rapidamente, mas também arde. E isso não resolve o problema. O que resolve não é esta discussão contra as espécies. Para mim, o foco é a gestão integrada, coordenada e, claro, equilibrada do território. O equilíbrio integra esse processo. Não podemos pôr um país só com eucaliptos.…
Para esse equilíbrio poderia ter havido um travão mais cedo à crescente cultura do eucalipto?
Não acho que seja um travão, acho é que é uma questão de gestão.
O que é que fizemos estes anos todos para melhorar a gestão da floresta abandonada e do território abandonado?
Não conseguimos dar passos significativos. Fizemos as ZIF e foram perdendo gás por questões de financiamento. As questões orçamentais, é bom dizer, sempre nos condicionaram. Se disser que tenho necessidade de gastar umas dezenas de milhões para fazer cadastros, põe-se sempre a questão do trade off entre isso e outra aplicação do recurso. Mas a sociedade acha mais fácil justificar o dinheiro que aplicamos no combate do que aquele que aplicamos quando não há incêndios e que é preciso investir. Se calhar a Política Agrícola Comum pode ser um instrumento importante para o ordenamento da nossa floresta.
Portugal deveria despejar dinheiro em cima do problema? É com mais dinheiro que se resolve?
Não. Claramente que precisamos de recursos, porque se quisermos fazer um cadastro temos de ter dinheiro e agora podemos fazer formas mitigadas. A floresta deve ser gerida de forma próxima, não centralizada, mas deve ser coordenada a um nível mais elevado. E isso é um trabalho de gestão. É um choque de gestão e não de recursos económicos.