Nos últimos dias tenho estado envolvido numa discussão (aqui e ali desagradável) privada sobre a sensibilidade do fogo às espécies florestais dominantes.
É uma discussão entre dois curiosos, eu e um académico que não trabalha em ecologia do fogo, mas muito respeitado, incluindo por mim, no seu campo de trabalho.
No fundo é uma discussão entre as duas posições dominantes neste assunto, a posição da generalidade da sociedade, que acha que a espécie dominante de um povoamento influencia o comportamento do fogo, e a posição da generalidade das pessoas que estudam o assunto, que acham que “o comportamento do fogo é muito pouco sensível à especie”.
Esta última frase entre aspas é de Paulo Fernandes que, por uma coincidência notável, esteve recentemente em Zamora, a olhar para uma área de 28 mil hectares que ardeu há dois anos num terreno com um ondulado suave, com cobertos distintos lado a lado, o que permite uma verificação empírica muito difícil em Portugal.
Como o Paulo Fernandes explica, em Portugal os carvalhais (estou a simplificar a expressão usada pelo Paulo “as espécies supostamente mais resistentes à propagação do fogo”), sobretudo os carvalhais maduros e complexos, estão em depressões ou vales húmidos e abrigados, enquanto os pinhais e eucaliptais estão em situações de maior secura e exposição aos ventos.
Daí que seja quase sempre possível confundir as diferenças de comportamento do fogo em depressões e vales húmidos e abrigados, em relação a encostas e festos secos e expostos ao vento, com a ocupação do solo que lá está, numa aplicação da famosa falácia de confundir correlação com causalidade.
Os que estudam o assunto – não é o meu caso, eu limito-me a preferir seguir os que estudam o assunto a seguir os curiosos que, sendo muito bons numa área do conhecimento qualquer, não estudam a ecologia do fogo, para além de achar o que dizem os ecólogos do fogo muito mais consistente com o que sei de paisagem, comparando com o que dizem os que, podendo até saber de paisagem, não sabem o suficiente de ecologia do fogo – insistem que as diferenças de comportamento do fogo e as diferenças de coberto vegetal têm a mesma origem, nas condições edafo-climáticas de cada território, e que o fogo, sobretudo em condições meteorológicas extremas, não quer saber da espécie florestal dominante mas apenas da quantidade e estrutura dos combustíveis disponíveis, o que quer dizer, dos combustíveis finos.
Ora o que o Paulo Fernandes veio dizer por estes dias é que foi exactamente isso que comprovou em Zamora e que é impossível verificar de forma simples em Portugal, usando fotografias como estas duas.
Nas fotografias, as manchas mais escuras eram pinhal e as mais verdes carvalhal.
Pode-se dizer que há uma diferença evidente entre o comportamento do pinhal e o comportamento do carvalhal, mas isso não é o mesmo que dizer que isso resulta de uma maior resistência ao fogo, quer os pinhais, quer os carvalhais arderam igualmente de copas há dois anos, com intensidades semelhantes, a diferença que é visível, dois anos, é a diferença de resposta do pinheiro e do carvalho ao fogo.
O pinheiro convive com o fogo através de uma estratégia em que o indivíduo morre, não tem capacidade de resposta ao fogo, mas a espécie subsiste através de uma intensa sementeira que é favorecida pelo facto do calor abrir as pinhas. Esta estratégia funciona relativamente bem quando o intervalo entre fogos é maior que o tempo que leva a planta a começar a produzir sementes em abundância.
O carvalho convive com o fogo com uma estratégia diferente, em que o indivíduo tem capacidade de se regenerar depois do fogo (de copa ou de raiz, depende das circunstâncias), não morrendo, razão pela qual, dois anos após o fogo, vemos os carvalhais reconstituídos (não vou entrar em pormenor sobre o rejuvenescimento estrutural do carvalhal promovido pelo fogo) e os pinhais aparentemente mortos (seria preciso ir olhar para o que está a ocorrer no que diz respeito a regeneração por semente, para perceber se vão reconstituir-se e como).
Mas no que diz respeito ao comportamento do fogo, e não da espécie depois do fogo, não há diferenças, o fogo consumiu alegremente 28 mil hectares como uma razoira que não reconheceu quaisquer diferenças resultantes das espécies em presença.
Como o relevo é bastante tranquilo, as habituais diferenças de topografia e humidade que dão origem a uma maior diversidade dos efeitos de um fogo em Portugal, deixando mesmo retalhos por arder, não se verificam, portanto teriam de ser as espécies em presença a provocar diferenças de comportamento do fogo, o que manifestamente não é o que se vê.
A discussão torna-se ainda mais difícil em Portugal porque a presença do eucalipto, que não se verifica em Zamora (não por qualquer política anti-eucalipto, mas simplesmente porque as condições edafo-climáticas não são favoráveis à sua produção), acaba por confundir mais as coisas porque a resposta do eucalipto ao fogo é semelhante à do carvalho, isto é, se este fogo e estas fotografias fossem de uma área em que o mosaico florestal em vez de ser pinheiro e carvalho, fosse de eucalipto e carvalho, as fotografias de povoamentos com exemplares adultos mortos, no caso do pinhal, contrastando com povoamentos igualmente afectados pelo fogo, mas com os exemplares vivos, no caso do carvalhal, não teriam o contraste que se vê acima, porque a resposta do eucaliptal seria semelhante à do carvalhal.
O relevante, no entanto, é isto: o fogo não escolhe espécies, sobretudo o fogo em condições meteorológicas extremas, escolhe disponibilidade de combustíveis.
Pode argumentar-se que um carvalhal maduro e complexo cria um ensombramento suficiente para que a humidade e disponibilidade de combustíveis finos seja diferente da que existiria no pinhal ou eucaliptal nas mesmas condições edafo-climáticas.
Independentemente das muitas circunstâncias que podem limitar o alcance dessa diferença, ao ponto dela ser irrelevante num fogo de elevada intensidade empurado por ventos fortes, subsistiria uma questão central: que recursos são necessários para gerir a transição de um pinhal ou eucaliptal instalado em condições adversas de solo, secura e exposição aos ventos para um carvalhal maduro e complexo?
Qualquer avaliação sobre a dinâmica da vegetação e sua relação com o fogo durante essa transição, que seguramente demoraria anos até que o ensombramento tivesse algum efeito relevante no controlo da quantidade e estrutura dos combustíveis finos de modo a alterar o comportamento do fogo, implica reconhecer que os recursos necessários seriam imensos e, em qualquer caso, não dispensariam o fogo como uma das principais ferramentas de condução dessa transição.
Ou seja, mesmo esquecendo as dúvidas sobre a eficácia de uma política de gestão do fogo pela alteração da composição dos nossos povoamentos florestais, procurando atingir o objectivo de transformar o país num imenso carvalhal, a realidade é que se trata de uma opção irrealista e incomportável para os recursos existentes (mesmo que fortemente engordados por opção política) na nossa sociedade, sobretudo face a políticas alternativas de abandono (ou rewilding, para ser mais palatável) e gestão sensata do fogo através da gestão de combustíveis finos.
Esqueçam as maluqueiras da transformação da paisagem com base em decisões administrativas, um custo irrecuperável que deve ser abandonado o mais rapidamente possível, e concentremo-nos no que interessa, pagar cem euros por hectare a todos os proprietários que mantenham o seu terreno com menos de 50cm de combustíveis finos.
O resultado mais provável seria um aumento generalizado de gestão, reforçando um mosaico de soluções em função dos interesses de cada proprietário, que naturalmente procurarão tirar partido das diferenças de condições edafo-climáticas em cada sítio para optimizar o retorno pretendido.
Note-se que nem sempre o retorno pretendido pelo proprietário será económico porque os proprietários não são todos iguais e não querem todos o mesmo tipo de retorno das suas propriedades.
À custa de algumas asneiras, alguma perda de eficiência estratégica que resultaria de sermos todos robots com objectivos claros e pré-definidos e alguma fraude?
Provavelmente, mas a comparação não deve ser feita com a solução ideal que cada um de nós acha que sabe qual é, a comparação deve ser feita em relação ao que existe, e injectar cem euros por hectare para pagar gestão que resulta em menos de 50 cm de altura de combustíveis finos num terreno, resulta numa coisa muito melhor que o lento mas seguro caminho para o desastre de 2030 (mais ano, menos ano) para que caminhamos à custa de ideias erradas sobre o papel ecológico do fogo ou das espécies florestais dominantes nas nossas paisagens.
O artigo foi publicado originalmente em Corta-fitas.