Com certeza já reparou, perto das bombas de gasolina da BP, que a mesma anuncia que se encher ali o seu depósito, as suas emissões serão “compensadas” e que portanto não tem mesmo de se preocupar com as alterações climáticas enquanto o seu motor queima derivados de petróleo e emite dióxido de carbono. Más notícias: é mentira. A moda da neutralidade de carbono e dos ‘offsets’ de carbono é só o último prato do dia do menu infinito de falsas soluções do capitalismo verde.
Começo por repetir o que o melhor da ciência climática tem para dizer: para evitar ultrapassar o aumento de 1,5ºC até 2100 é necessário realizar um corte de 50% das emissões globais de gases com efeito de estufa até 2030, em relação ao nível de emissões de 2010. É um corte gigantesco que temos de fazer enquanto espécie, para tentar manter as condições climáticas e materiais que permitiram a existência de civilizações humanas. Como é mesmo o que temos de fazer, os grandes emissores e aqueles que construíram os seus impérios, o seu status e a sua riqueza em cima destas emissões, tudo dirão e tudo farão para evitar fazê-lo, mesmo que tal nos custe (a todos) qualquer espécie de futuro.
A crítica à neutralidade de carbono não se prende com o conceito em si, mas com a visão oportunista do sistema capitalista e seus principais agentes. Sempre criaram a sua própria contabilidade para evitar pagar impostos, para travar transferências de riqueza, para esconder e especular com dívidas públicas e privadas. Com esta maneira de ver o mundo, naturalmente olharam para o conceito de neutralidade carbónica e pensaram: “Porque raio hei de cortar emissões se posso aumentar as coisas que retiram essas emissões da atmosfera?”. E vai de inventar: engenhocas à la professor Pardal, que chupariam dióxido de carbono da atmosfera, chamadas de ‘captura e armazenamento de carbono’, que não funcionam, e tentar aumentar a capacidade de absorção dos sistemas naturais como os oceanos ou as florestas.
Felizmente não avançou em grande escala a proposta de despejar ferro nos oceanos para aumentar a capacidade de absorção de CO2, com os vários impactos negativos associados a esta operação, mas nos últimos tempos têm surgido os planos megalómanos de florestação em grande escala como milagre. O plano “vilão Bond” da petrolífera Shell, por exemplo, diz que é necessário plantar uma área de floresta equivalente à área do Brasil para manter o aumento da temperatura abaixo dos 1,5ºC até 2100 (é claro que este plano implica eles continuarem a explorar petróleo e gás). A própria Shell propõe-se plantar uma área do tamanho de Espanha, enquanto a ENI propõe plantar uma área do tamanho da Áustria. Talvez estejam à espera que Elon Musk comece a leiloar terrenos em Marte para plantar lá? Este é só o primeiro e evidente sinal da impossibilidade desta solução. Mas tento responder a duas perguntas.
Porque é que plantações florestais não são uma boa solução para a crise climática?
- Porque não há área suficiente no planeta Terra para compensar as emissões actuais, quanto mais o aumento de produção de petróleo e gás preconizado por muitas destas empresas;
- Porque a capacidade da maior parte das florestas do mundo para retirar carbono da atmosfera está a reduzir-se e não a expandir-se, por causa dos efeitos da crise climática;
- Porque para ser um verdadeiro sumidouro de carbono, com absorção estável, as florestas demoram décadas e até séculos a constituir-se e a acumular carbono nos solos, árvores, plantas e outros seres vivos – plantações florestais não são nada disto e derivam de uma visão do meio natural como algo totalmente plástico e moldável às necessidades imediatas do lucro;
- Porque todas estas propostas assentam no oportunismo dos sectores que não querem cortar emissões e dos sectores que já operam nesta área, como as celuloses e a bioenergia, que buscam sempre mais uma fonte de rendimento e pervertem qualquer boa solução, promovendo as curtas rotações que colocam o CO2 na atmosfera quando as árvores são processadas.
Porque é que as plantações florestais são muito má ideia para a crise climática?
- Porque as operações nos solos necessários para instalação de grandes extensões florestais levam a uma libertação massiva de CO2 actualmente retido nos solos;
- Porque existe um risco já confirmado de que muitas destas plantações seriam instaladas em ecossistemas como pradarias, savanas, tundras e zonas húmidas modificadas, destruindo esses sistemas e liberando o CO2 aí retido;
- Porque a plantação indiscriminada de árvores sem critério (e é obviamente disso que se trata quando falamos nesta escala) aumenta o risco de incêndios florestais, aumentando até o risco para as florestas antigas;
- Porque há várias décadas que, sob o guarda-sol das compensações de emissões de carbono, o que vemos são impactos sociais massivos, roubos de terras, despejos, desflorestação e destruição de biodiversidade nas comunidades rurais dos países mais pobres.
O ciclo de carbono tem partes rápidas e lentas. As rápidas compreendem a circulação entre a atmosfera, a terra, os ecossistemas e os oceanos, enquanto as lentas compreendem a circulação entre a atmosfera e as rochas que compõem a geosfera. Os combustíveis fósseis vêm da circulação lenta entre a atmosfera e as rochas, e a civilização industrial baseada na combustão do petróleo, gás e carvão provocaram um desequilíbrio geológico que não pode ser resolvido pela parte rápida do ciclo de carbono. Neste sentido, estas propostas não são só complexas e incertas: é uma impossibilidade elas resolverem o problema, e ameaçam agravá-lo.
Finalmente, há uma derradeira realidade que deve assentar como uma forte chapada na cara dos propagandistas desta solução: a desflorestação. O mundo não está a ganhar área florestal: está a perdê-la a um ritmo estonteante. Está a perdê-la não só porque a crise climática está a tornar territórios que antes tinham condições para ter florestas em territórios que já não as conseguem nutrir, mas porque há uma acção direccionada e activa por parte de governos e empresas para derrubar áreas florestais fulcrais para a regulação climática do nosso planeta. O Bornéu malaio e indonésio está a ser substituído por plantações de palma, celuloses e barragens, a Amazónia, em particular no Brasil, Perú e Colômbia, está a ser devastada para a instalação de pastos para gado, para extracção da maneira, para instalação de minas, para a produção de soja e biocombustíveis. Desde 2001, a cobertura arbórea global reduziu-se em 10% (mais do que a área da Índia). Desde 2002, as florestas húmidas perderam 6% da sua área (mais do que área de Espanha). O governo russo conseguiu fazer melhor: contar a capacidade de absorção da sua área florestal actual, uma área equivalente a duas Índias, “converter” essa capacidade em créditos de carbono e quer vendê-la a outros poluidores (incluindo os grandes emissores russos) como “compensação” de emissões. Não é preciso sequer plantar, basta existir que compensa as novas emissões.
O circo da neutralidade carbónica, a que o governo português e a União Europeia aderiram efusivamente, só serve para fazer de nós palhaços mortos. É necessário cortar os 50% de emissões globais na próxima década, sim ou sim. Se isso significa que a maior parte das petrolíferas terão de falir? Sim.
João Camargo, Investigador em alterações climáticas