Num país tão pequeno e tão bem servido de vias de comunicação, com uma rede bem distribuída de instituições de ensino superior agrário e escolas profissionais agrícolas, um número elevado de municípios e associações de desenvolvimento local, três confederações nacionais de agricultura e muitas estruturas associativas empresariais, com benefícios significativos oriundos dos fundos europeus, é deveras surpreendente que se fale de abandono, desertificação e despovoamento, ou seja, de baixa densidade e rural remoto e profundo.
Essa constatação é, antes de mais, o retrato fidedigno de muitos erros acumulados ao longo das últimas décadas, aos quais devemos acrescentar o esquecimento de territórios com uma representação política cada vez mais reduzida, e, sobretudo, uma estrutura de relações de poder e propriedade que acomodou uma sociedade conservadora e refreou a dinâmica do acesso, do rejuvenescimento e da inovação socioeconómica nas áreas mais frágeis da baixa densidade.
Dito isto, é indiscutível que os impactos gerados pelas grandes transições – climática e energética, ecológica a alimentar, tecnológica e digital, demográfica e migratória, socioeconómica e sociocultural – aceleraram mudanças substanciais no universo do mundo rural, seja na ecologia da paisagem, na agricultura de precisão e biodiversidade, ou na biopolítica dos sistemas produtivos e do capital social, isto é, entrámos definitivamente no universo paradigmático da 2.ª ruralidade.
Ora, em época de transição paradigmática é possível discernir duas grandes tendências que podem entrar em rota de colisão. A 1ª tendência tem a ver com o acesso ao espaço rural, considerado espaço público, como espaço de conservação, espaço de recreio, espaço quadro de vida, espaço de aculturação.
A 2.ª tendência de fundo tem a ver com a privatização/apropriação do espaço rural por poderosos processos de ruralização que estão em curso neste momento. O conflito parece inevitável. Não podemos idealizar o mundo rural por mais assombrosas que sejam as nossas representações e encenações. Na retaguarda desses imaginários urbanos sobre o mundo rural correm as relações de poder. Por isso mesmo, não devemos confundir o frenesim dos novos atores do mundo rural, os neorurais de que se fala, com relações de poder no interior do mundo rural português. Eis o enunciado da macro física do poder, ou seja, os processos de ruralização em curso no mundo rural:
– O produtivismo das agriculturas especializadas (as explorações super-intensivas);
– O rentismo imobiliário (a extração de mais-valias fundiárias);
– A florestação industrial de terras agrícolas (as grandes plantações industriais);
– A industrialização verde e as novas métricas (o greening produtivista);
– O radicalismo conservacionista (grandes propriedades naturais/naturalizadas);
– A residencialização do espaço agro rural (os loteamentos em espaço rural);
– A energetização do espaço agro rural (os parques energéticos exuberantes);
– A turistificação das amenidades rurais (os PIN, os parques bio ambientais e outros);
– A cinegetização do espaço rural (as reservas de caça imponentes);
– A logística comercial do espaço rural (os equipamentos e infraestruturas).
Tudo o que possamos dizer a propósito dos novos valores relativos à ecologia da paisagem, ao ordenamento do território, ao uso múltiplo e à acessibilidade ao espaço agro rural, irá, provavelmente, conflituar com as tentativas de apropriação e privatização de alguns destes processos de ruralização em curso.
Os conflitos serão inevitáveis, mas deles, também, poderão emergir novas territorialidades e, mesmo, algumas conversões à 2.ª ruralidade, por via da responsabilidade social e ambiental, em primeira instância, e por via de uma nova sensibilidade política que coloca o ordenamento, a biodiversidade, as infraestruturas ecológicas e os serviços de ecossistema em posição destacada e que são, como sabemos, absolutamente imprescindíveis à segurança alimentar, aos sistemas produtivos locais e ao bem-estar dos cidadãos.
Se formos capazes de estabelecer relações benignas e mutuamente vantajosas, promovidas e estimuladas pelas políticas públicas, entre alguns destes processos de ruralização poderemos assistir ao desenvolvimento de efeitos virtuosos de transição para a 2.ª ruralidade.
Aqui chegados, afirmo, desde já, que, em face de processos de ruralização tão variáveis e distintos, não será fácil extrair uma estratificação social característica. Assistiremos, inelutavelmente, a várias estratégias empresariais, umas mais intensivas em capital por via de fundos imobiliários e de investimento, outras de natureza mais familiar ou de grupo familiar com origem nacional ou estrangeira.
Sabemos, também, que aumentarão as estratégias familiares de projeto de vida, de fuga ou até de emergência, e que muitas surgirão com os novos movimentos pendulares entre a cidade e o campo, não apenas para os anéis suburbano e periurbano, mas, também, para os anéis mais afastados pertencentes ao rural remoto e profundo.
Por último, podemos prever, ainda, uma associação benigna e virtuosa entre jovens talentos gerados por start-ups em incubadoras de base rural com a colaboração de investigadores universitários de todo o mundo e nómadas digitais. Em síntese, uma primeira aproximação desta estratificação talvez possa ser alinhada do seguinte modo:
– Um primeiro estrato diz respeito à grande e média propriedade e às quintas novas que surgem associadas aos empreendimentos do tipo complexo, ligados ao golfe, ao enoturismo, ao turismo cinegético e às diversas formas de turismo de saúde, portanto, mais turistificados, internacionalizados e financeirizados;
– Um segundo estrato diz respeito à classe empresarial da agroindústria e do agronegócio convencional ligados à grande distribuição agroalimentar e ao agronegócio dos mercados internacionais e que está em ajustamento permanente aos mercados globais (em processos de concentração e fusão) e às condições gerais de financiamento;
– Um terceiro estrato diz respeito à classe dos micro, pequenos e médios agricultores, proprietários e arrendatários, que vão desde a agricultura de subsistência, presente nos mercados locais de proximidade e circuitos curtos de comercialização, até uma agricultura de subcontratação junto de cooperativas, intermediários e centrais de compra de grandes superfícies, cujos rendimentos oscilam com a flutuação dos preços de mercado e a concorrência, e com problemas recorrentes de liquidez e solvência, uma boa parte no limbo entre economia formal e economia informal;
– Um quarto estrato tem a ver com uma parte da classe urbana que decidiu, num primeiro momento, patrimonializar a herança recebida onde tudo começou; estes neorurais aumentam o número de movimentos pendulares cidade-campo e interagem cada vez mais com as comunidades das aldeias, uns empresarializando aquele património com microprojectos empresariais, outros ensaiando sistemas alternativos de produção que acabam por intersectar e interagir com ele e são geralmente portadores de uma dose significativa de iniciativa e inovação;
– Um último estrato diz respeito à circulação de jovens elites e capital humano em ecossistemas de investigação-ação-extensão-desenvolvimento com origem em projetos de cooperação interuniversitária e empresarial que, mais tarde ou mais cedo, acabam por circular em incubadoras e aceleradoras e formar aí as suas próprias start-ups.
A grande interrogação que fica por esclarecer é saber se as grandes transições arrastam consigo uma rápida conversão agroecológica e um entendimento muito mais compreensivo, preventivo e rigoroso do risco climático e meteorológico, como agora se observa mais uma vez com os últimos incêndios.
Estes processos ou duplos movimentos, de concentração e fragmentação, hoje em plena operação, ocorrem e coabitam o mesmo espaço-território, pelo menos no mundo dito desenvolvido. Em cada movimento, geram-se novas fricções entre produção agrícola, produção agroindustrial, regras eco ambientais, distribuição agroalimentar e modelos de consumo. Em cada movimento, as cadeias de valor alongam-se no território, tornam-se mais complexas, deslocalizam-se, adquirem vida própria, independentemente da base territorial de origem. Em cada processo ou movimento, há uma nova artificialização, há segregações contínuas de pessoas e atividades, há franjas de agricultores e pequenas indústrias que são irremediavelmente marginalizadas.
Estamos, portanto, a viver uma Grande Transição, um longo e prolongado movimento paradigmático no mundo rural, se quisermos um longo movimento de fusão cidade-campo que a digitalização, a internet dos objetos e a inteligência artificial irão acelerar. No limite, teremos um campo multidimensional feito de produção, conservação, recreio, quadro de vida e aculturação, mas, evidentemente, com muito atrito em matéria de estratificação social durante a transição. Porém, é neste contexto que devemos colocar a interpretação dos processos de ruralização referidos, dos ambientes digitais inteligentes e a natureza das start-up que nascem em estruturas próprias de acolhimento no meio rural e que são uma verdadeira promessa de futuro.
Professor Catedrático na Universidade do Algarve
O programa agroecológico e as contradições da 2.ª ruralidade