A recente edição do relatório Perspetivas Alimentares da FAO lança luz sobre uma dinâmica curiosa e, à primeira vista, contraditória no mercado mundial de carne de bovino. Assim, espera-se que a produção global diminua 0,6% em 2025, fixando-se nos 78 milhões de toneladas, ao mesmo tempo que o comércio internacional deverá crescer 1,4%, atingindo os 13,2 milhões de toneladas. Como se explica esta aparente incoerência?
A resposta está, em grande parte, nos Estados Unidos e no Brasil, dois gigantes da produção mundial. A redução nos abates de bovinos nestes países, causada por uma conjugação de fatores como a menor disponibilidade de animais prontos para o abate, questões ambientais e ajustes estratégicos no setor pecuário, explica quebra na produção. No entanto, os mesmos EUA são responsáveis por uma procura acrescida no mercado internacional, pressionando a balança comercial e, paradoxalmente, alimentando o crescimento das importações mundiais.
Este fenómeno revela várias tendências estruturais importantes, que gostava de salientar;
Em primeiro lugar, sublinha-se a crescente interdependência dos mercados agroalimentares. Uma quebra na produção nacional não leva necessariamente a uma contração no consumo, pode antes traduzir-se num aumento das importações. Isto é particularmente evidente em economias como a dos EUA, onde o padrão alimentar continua fortemente ancorado no consumo de carne de bovino, e onde as cadeias de abastecimento globais permitem mitigar eventuais quebras internas.
Em segundo lugar, o dado reforça o papel estratégico que países exportadores, como a Austrália, o Paraguai, a Argentina ou mesmo até algumas nações africanas emergentes, podem vir a desempenhar nos próximos anos, aproveitando a retração temporária dos grandes produtores.
Por fim, esta realidade lança também um alerta para a necessidade de políticas públicas mais sustentáveis e de uma maior diversificação na produção e consumo de proteínas. A dependência de um número restrito de países para satisfazer a procura global de carne de bovino torna o sistema alimentar vulnerável a choques climáticos, sanitários e geopolíticos. A redução da produção em dois países foi suficiente para afetar as perspetivas globais. O que acontecerá se as quebras forem mais generalizadas?
O crescimento do comércio global, mesmo em contraciclo com a produção, mostra a capacidade do mercado de se ajustar. Mas não resolve os dilemas de fundo: como alimentar o mundo de forma segura, justa e sustentável num contexto de crescentes restrições ambientais e sociais? A carne bovina continua a ser um produto de forte valor económico e cultural, mas os sinais são claros: o modelo atual enfrenta limites. E será pela inovação, produtiva, comercial e sobretudo política, que poderemos reequilibrar este paradoxo.
Outra questão que me assola; E o que faremos na Europa?
Num continente onde os debates sobre sustentabilidade, bem-estar animal e neutralidade carbónica estão cada vez mais presentes, a Europa terá de decidir que papel quer desempenhar neste novo tabuleiro global. Continuaremos a impor exigências rigorosas aos nossos produtores enquanto aumentamos a dependência de carne importada, muitas vezes oriunda de sistemas com padrões menos exigentes? Ou seremos capazes de valorizar os nossos modelos mais sustentáveis, investir na inovação agroalimentar e reforçar a autossuficiência estratégica? A resposta a estas perguntas determinará não só o futuro da nossa produção pecuária, mas também a coerência da nossa política agrícola, ambiental e comercial. É tempo de pensar — e agir — em europeu.
Fonte: APIC