No passado dia 13 de setembro, realizou-se o Seminário Anual da APIC, onde foram proferidas várias mensagens que devem ser enaltecidas e divulgadas.
Começamos com a primeira mensagem, do Professor Albano Pereira da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, que foi orador na mesa de debate na parte final do evento.
…”Discutir a carne na sociedade moderna é abordar algo que vai muito além do prato: é refletir sobre quem somos, de onde viemos e para onde vamos.
Vivemos num país onde, infelizmente, a relação com o campo e com o setor primário se foi diluindo, quase como uma memória distante, embalada num certo romantismo que, ironicamente, muitas vezes não é mais do que a forma que encontramos de afastar a realidade. O português moderno tornou-se urbano e, com isso, perdeu um pouco da ligação com as raízes agrícolas que sustentaram este país durante séculos. Os campos de outrora, que formaram a paisagem física e cultural de gerações, hoje são vistos por muitos como meros cenários para o lazer – para caçar, descansar num monte no Alentejo ou respirar ar puro numa escapadinha de fim de semana. O campo deixou de ser o pilar da sociedade para se tornar uma espécie de parque temático para os habitantes da cidade.
E não é culpa de ninguém em particular. Talvez seja o resultado de uma geração de políticos e líderes nascidos do “boom” académico que sucedeu à adesão à União Europeia. A modernização trouxe-nos benefícios inegáveis, mas também nos distanciou daquele Portugal agrícola que, nas escolas, foi muitas vezes apresentado como pobre e sofrido. Com isso, consolidou-se uma espécie de aversão a essa vida de outrora, como se o progresso só fosse possível pelo abandono das nossas raízes. Esquecemos os nomes das ferramentas, dos costumes, das tradições. E quando pensamos nelas, evocamos mais a pobreza dos nossos avós que abandonaram o campo do que a riqueza cultural e social que essa vida encerra.
Curiosamente, na cidade, o campo ainda nos atrai, mas de uma forma curiosa: assistimos a documentários sobre a natureza e compramos garrafas de vinho pelo design do rótulo. Sentamo-nos em restaurantes sofisticados onde degustamos pratos de carne que parecem distantes do suor e trabalho árduo de quem a produziu. Já nem os nossos escritores nos recordam dessa ruralidade. Miguel Torga, com os seus “Bichos” e “Contos da Montanha”, já não faz parte das leituras obrigatórias – talvez porque a sua crueza nos recorde um passado que preferimos manter à distância.
É por isso que iniciativas como este simpósio são tão fundamentais. Estes debates não podem ser para uns poucos, para os já convertidos ou especialistas. Precisam de tocar a todos nós: desde a família que, num supermercado, fica confusa com os conselhos nutricionais, até ao político mais erudito que influencia as decisões nacionais. Precisamos de resgatar esta conversa e colocá-la na agenda de toda a sociedade. Afinal, como diz o velho ditado, “somos o que comemos”. E a gastronomia é uma das marcas mais elogiadas do nosso país pelo mundo fora. Mas, quantos de nós ainda sabem que o pão vem do trigo e que a carne no prato muitas vezes é o resultado do esforço interminável de tantas famílias que nunca aparecem nos documentários?
Felicito a APIC, então, não apenas pela organização, mas por nos trazerem esta reflexão. Que este seja um ponto de partida para um diálogo mais profundo e abrangente. Porque, no final das contas, a carne que comemos tem muito a nos dizer sobre quem somos enquanto sociedade”…
Fonte: APIC