Do nosso lado, já fizemos chegar ao poder político um conjunto de propostas que, em nossa opinião, reforçariam o papel e participação da PARCA, dando-lhe objectivos a concretizar, sentido de corpo e maior regularidade de funcionamento.
Em Novembro de 2011, ou seja, há quase 12 anos, era assinado pelos então Ministros da Economia e da Agricultura, Álvaro Santos Pereira e Assunção Cristas, o Despacho que procedia à constituição da Plataforma de Acompanhamento das Relações na Cadeia Alimentar, a hoje muitas vezes referenciada PARCA.
Mas a maior parte das pessoas que por vezes ouve falar dessa Plataforma saberá realmente o que é a PARCA ou para que é que ela serve?
Estávamos nos primeiros meses do Governo liderado por Pedro Passos Coelho e em pleno período de intervenção da Troika.
Em boa verdade já no período final do Governo anterior, o ministro da Agricultura à época, António Serrano, tinha iniciado uma série de démarches no sentido de gerar alguma confluência, diálogo e tentativa de consenso entre produção, transformação e retalho em sectores muito concretos, como é o caso do leite em que, na altura, estava profundamente envolvido.
Mas, na verdade, o quadro de mudança que se viveu no período da crise da dívida soberana, deu um forte empurrão para a constituição daquela Plataforma que, como se dizia no já referido Despacho, na “situação económica [que então se vivia] surge com acrescida premência a necessidade de garantir a transparência nas relações de produção, transformação e distribuição da cadeia agro-alimentar”. E acrescentava-se: “para atingir este importante objectivo, é fundamental começar por reconhecer a imprescindibilidade do bom relacionamento entre as diversas entidades que participam nesta cadeia, sendo esse um factor decisivo não só para o desenvolvimento de uma concorrência mais saudável, como também para garantir uma justa e mais equitativa distribuição de valor ao longo da referida cadeia agro-alimentar”.
E insistia-se que “a promoção de um diálogo organizado, próximo e regular entre os representantes dos diferentes sectores da produção, da transformação e da distribuição de produtos agrícolas é, assim, um primeiro passo no sentido de fomentar o bom relacionamento desejado, sendo contudo certo que a verdadeira transparência só poderá ser alcançada com o empenho e compromisso de todos os intervenientes”.
Cerca de um ano antes, a Autoridade da Concorrência tinha publicado um amplo Relatório sobre as Relações Comerciais entre a Distribuição Alimentar e os seus Fornecedores, cujas recomendações correspondiam, de alguma forma, ao Caderno de Encargos desta Plataforma.
Naquele período e também com o forte empenho do posterior Ministro da Economia, António Pires de Lima e dos Secretários de Estado que os acompanhavam – José Diogo Albuquerque, do lado da Agricultura, e Carlos Oliveira primeiro e Leonardo Mathias mais tarde, do lado da Economia – a PARCA foi absolutamente instrumental, inicialmente na constatação da ineficácia dos quadros de regulação e de autorregulação que então existiam e logo a seguir na construção do diploma das Práticas Individuais Restritivas do Comércio, publicado no final de 2013, o célebre decreto-lei das PIRC.
Quem teve oportunidade de viver por dentro esse momento, reconhecerá certamente que foi um período de forte tensão na gestão e aproximação de interesses muitas vezes extremadamente antagónicos, mas que foi também um período em que as instituições da sociedade civil intervieram e contribuíram fortemente para a construção de uma legislação que lhes dizia directamente respeito, de uma legislação B2B efectivamente não ‘autista’ que não tendo acolhido todas as contribuições e sugestões de todos os parceiros, fez uma alteração profunda no enquadramento legal das relações comerciais que, à época, apresentavam um muito mais profundo desequilíbrio.
Como me dizia há anos um dos responsáveis governativos de então, uma boa legislação é aquela em que todas as partes se sentem igualmente desconfortáveis. Na verdade, as partes podem não se ter sentido igualmente desconfortáveis, mas todas sentiram que não atingiram os vários objectivos que se tinham proposto, como todas terão igualmente percebido que, como diz o povo, ‘Roma e Pavia não se fizeram num dia’ e que a evolução deste quadro legal seria feita de forma dinâmica e numa sucessão de passos curtos, mas seguros e consolidados.
A entrada em funções de um novo Governo e o apoio ao mesmo realizado a partir de uma muito diferente Maioria Parlamentar, retirou alguma da dinâmica à PARCA a qual, a partir daí, vem funcionando em função das agendas ministeriais e da agenda mediática e não tanto de um qualquer programa de trabalhos pré-definido, reunindo com uma forte irregularidade e em resposta aos imperativos de cada momento e não tanto como um percurso para a concretização de objectivos concretos e de configuração, a médio/longo prazo, da cadeia de valor agroalimentar,
Nestes últimos sete anos de governos liderados por António Costa e não obstante o elevado espaçamento entre reuniões que ocorreu em amplos períodos, a PARCA já foi tutelada por três Ministros da Economia e dois Ministros da Agricultura e teve o envolvimento directo de cinco Secretários de Estado do lado da Economia e quatro do lado da Agricultura.
Apesar disso, neste período podem referir-se alguns marcos em que o envolvimento dos parceiros da PARCA se mostrou essencial: a assinatura do Código de Boas Práticas Comerciais, em 2016, a primeira revisão do diploma das PIRC em 2019, a transposição para o direito interno da Directiva ‘Unfair Trading Practices’, em 2021, ou, mais recentemente, a celebração do Pacto para Estabilização e Redução dos Preços dos Bens Alimentares, que serviu de suporte à aprovação, pelo Governo, do Cabaz IVA Zero ou a implementação do Observatório de Preços Agroalimentar.
Assim, presumindo que – chegados aqui – os leitores terão alcançado quais os objectivos, resultados e modo de funcionamento desta Plataforma, será normal perguntar: E a PARCA continua a fazer sentido?
Diria que se em qualquer altura isso é verdade e se é ainda mais verdade nos períodos de maiores dificuldades como os que vivemos actualmente, apenas com um diálogo franco e transparente entre todos os parceiros se pode conduzir a uma minimização das dificuldades, das tensões e dos conflitos comerciais que, aqui e acolá, vão surgindo.
Não se trata de conseguir o unanimismo. Trata-se de estabilizar uma plataforma onde as questões e as dificuldades são colocadas e onde são discutidas e tendencialmente consensualizadas medidas que contribuam para a sua ultrapassagem, para reforço da cadeia de valor, em benefício do consumidor e respeitadas as directrizes em matéria de concorrência, que nunca podem ser subvertidas com os compromissos que se consigam alcançar.
Mas a PARCA não pode ser apenas uma espécie de Corporação de Bombeiros que é activada a cada incêndio que surge na cadeia de valor ou no país. Ela deverá ser também uma espécie de Brigada de Prevenção e Ordenamento Florestal, que visa uma melhor harmonização, fluidez, transparência e eficiência do mercado e da cadeia de valor, para que os Bombeiros se tornem menos e menos necessários.
Do nosso lado, já fizemos chegar ao poder político um conjunto de propostas que, em nossa opinião, reforçariam o papel e participação da PARCA, dando-lhe objectivos a concretizar, sentido de corpo e maior regularidade de funcionamento.
Desde logo, seria importante que no início de cada mandato, as duas tutelas, conjuntamente com os parceiros que integram a Plataforma, estabelecessem um Programa de Trabalhos para a PARCA que acompanhasse todo o período da Legislatura, um programa que não deveria, obviamente, ser estanque e ter a capacidade de acolher e integrar todos os temas que conjunturalmente afectassem o sector.
Depois, propusemos que a PARCA passasse igualmente a abranger os sectores não alimentares integrados no chamado grande consumo, ou no que normalmente designamos como universo FMCG. Apenas por inocência ou por desconhecimento se pode acreditar que o quadro de relacionamento comercial entre os diversos elos da cadeia se estabelece de forma diferente entre as partes, apenas e só, porque uns produtos são alimentares e outros não. Em nossa opinião, a PARCA deveria ser a Plataforma de Acompanhamento das Relações na Cadeia de Abastecimento, tout court.
De seguida, demos indicação que seria importante que as várias entidades públicas envolvidas na Plataforma – ASAE, AdC, DGAE, D.G.Consumidor ou GPP – fizessem anualmente um balanço das suas actividades nesta área, seja a nível de fiscalização, seja de acompanhamento de mercado, seja das dinâmicas legislativas com interferência menos directa, mas ainda assim sensível, na fileira, seja de ponto de situação de dossiers europeus com implicações nas relações comerciais no sector alimentar.
Sugerimos ainda que fosse realizada uma avaliação sistemática da implementação e aplicação dos diplomas legais mais estruturantes, não no sentido de uma constante e recorrente alteração de regras, mas no sentido da sua afinação e da sua mais fácil interpretação e aplicação seja pelos operadores económicos, seja pelas autoridades competentes.
Finalmente, chamamos a atenção para três temas muito relevantes e que, até ao momento não conseguiram ser objecto de enquadramento jurídico e de definição de regras mais claras para a ultrapassagem das dificuldades que com regularidade lhe surgem associadas. Estamos a falar, concretamente, do que designamos como débitos históricos, desreferenciação de produtos não formalizada de forma atempada e discriminação não objectiva entre marcas.
Julgamos que se estas matérias forem endereçadas num futuro programa da PARCA, teremos – mais uma vez – motivos para que a Plataforma readquira dinâmica e tracção e que os respectivos trabalhos possam contribuir para uma fileira do Grande consumo, mais forte, mais ágil e mais eficiente.
Artigo publicado originalmente em CentroMarca.