O Tiago Pereira tem um projecto fantástico, “A música portuguesa a gostar dela própria“.
Depois de muito cirandar, gravando, tem agora uma sede em Serpins.
Um dia destes escreveu: “Quem roubou o sino da porta da CURA que faça boa música com ele, ou que o use para meditar para ser melhor pessoa, ou então que o devolva, que todos os ladrões deviam saber que os alarmes têm câmeras.” No dia seguinte, escreveu outra vez “Roubaram o sino da porta da CURA , o sino era da avó da Cristina. No seu lugar vamos pôr uma placa que diz: Aqui estava um sino que roubaram por dinheiro/ Mas a imaginação não pode ser roubada./ por isso sempre que aqui estiver imagine o som de um sino”.
Alguém estranhou a referência a alarmes em Serpins.
E isso lembrou-me de como a visão dominante sobre o mundo rural é a de um mundo idílico de paz e amor, uma visão idílica, sem qualquer relação com a realidade.
Por acaso tinha visto um dia destes um filme (penso que Joseph Losey) que começava com uma citação muito conhecida: “O passado é um país estrangeiro: lá faziam-se as coisas de forma diferente” e não pude deixar de associar a esta visão idílica do mundo rural, que para a maior parte de nós é uma ideia do passado.
Os roubos no mundo rural só não são um assunto permanente nos meios de comunicação social porque os conteúdos dos meios de comunicação social são definidos por públicos e produtores urbanos, com uma visão do mundo rural que raramente ultrapassa os “produtos típicos” e coisas assim.
Quando fazia apresentações, citava frequentemente Cesário Verde: “E perguntavas sobre os últimos inventos/ Agrícolas. Que aldeias tão lavadas!/ Bons ares! Boa luz! Bons alimentos!/ Olha: Os saloios vivos, corpulentos,/ Como nos fazem grandes barretadas!”, que me parece corresponder bastante a uma das ideias dominantes sobre o “típico” mundo rural.
Só que nada disto é verdade.
O mundo rural, hoje sem pessoas e com a retracção da autoridade do Estado – quem se revolta contra o estado a que chegaram os serviços de saúde ou de educação, deveria olhar com atenção para o estado a que chegaram as funções nucleares do Estado, incluindo defesa e segurança, neste último caso, especialmente no mundo rural – é o paraíso dos ladrões.
Os roubos de metais – sejam de sistemas de rega, linhas de comboio ou instalações eléctricas -, de gado, de pinha, de cortiça, de castanhas, de azeitona (um dia destes um produtor atónito contava-me como lhe tinham roubado linhas de oliveiras acabadas de plantar junto à estrada), de madeira cortada, de combustível das máquinas agrícolas, seja do que for, atingiram um nível inacreditável.
O roubo do sino é apenas um sinal de um problema bem mais vasto, que inclui a real invisibilidade do mundo rural tal como ele é hoje.
O artigo foi publicado originalmente em Corta-fitas.