Pacote de 440 milhões de apoio aos agricultores “cheira a desespero e reina a confusão”, diz José Diogo Albuquerque, antigo secretário de Estado da Agricultura.
“Uma tempestade perfeita.” É desta forma que o antigo secretário de Estado da Agricultura, de Assunção Cristas, descreve as razões que levaram os agricultores europeus a sair à rua em fortes protestos. Um movimento ao qual Portugal não foi alheio. “Estava lá o fósforo, só faltava empurrar”, diz José Diogo Albuquerque, em entrevista ao ECO.
“Os custos aumentaram com a inflação, houve a questão da guerra, o provisionamento dos cereais, os juros, os fatores aumentaram os preços. Tudo isso levou a uma situação que, a nível europeu, explodiu, agora”, elencou José Diogo Albuquerque, acrescentado que os protestos dos agricultores alemães, a exigir o regresso das medidas de apoio ao gasóleo agrícola, gerou um “efeito de contágio”.
Em Portugal, foi a comunicação do corte de 35% e 25% nas medidas de ecorregime da PAC, “muito em cima do pagamento” que espoletou os protestos. “Foi tudo junto. Estava lá o fósforo, só faltava empurrar”, defende.
O Governo apresentou um pacote de 440 milhões de euros, mas isso não bastou para travar os protestos. Entre medidas que já estavam previstas no Orçamento do Estado para 2024, no acordo de concertação social e que só serão aplicadas em 2025, José Diogo Albuquerque diz que o pacote do Governo “cheira a desespero e reina a confusão”, reconhecendo, contudo, que o Governo em gestão pouco pode fazer em termos de medidas estruturais.
E se “este ano houve mais candidaturas do que a verba existente”, o que “implicava haver um rateio”, “para o ano haverá o mesmo problema se houver mais candidaturas do que a verba existente e para o seguinte também”, alerta o antigo secretário de Estado defendendo, por isso, a necessidade de mudar esta medida da Política Agrícola Comum (PAC).
“Se os agricultores tivessem sido avisados atempadamente, no período das candidaturas, em junho, se calhar não teria havido esta contestação como há agora”, admite o antigo secretário de Estado. “Isto tudo acontece por uma gestão muito em cima do joelho. Voltamos à gestão do WhatsApp e de outros episódios desta governação que não na agricultura, mas que levam a estes casos” criticou numa alusão à autorização de Pedro Nuno Santos à indemnização da TAP a Alexandra Reis através daquela rede social.
“A implementação e a gestão do financiamento comunitário da Política Agrícola Comum de um país é um exercício pesado, com grandes volumes de dinheiro, com muitas medidas. Tem de haver um acompanhamento rigoroso e monitorizado ao longo do tempo”, defende o responsável lamentando que, “António Costa, na verdade, não tinha a agricultura como centralidade das suas políticas”.
Os agricultores estão na rua em Portugal e na Europa. O Governo português avançou com um pacote de medidas de 440 milhões de euros para tentar travar os protestos, mas não foi bem-sucedido. Os agricultores, em vésperas de eleições, exigem uma melhoria de rendimentos. Este é o momento ideal para fazer reivindicações?
Não sei se é o tempo ideal. Vamos dividir as reivindicações em dois grupos: as europeias e as nacionais. As europeias aconteceram agora, mas já vêm de trás. Surgem na sequência do lançamento de um pacote legislativo muito ambicioso em termos de ambiente, o Green Deal, o Pacto Verde, e isto vem introduzir pressão nos agricultores em termos de exigências. Poder-se-iam ter manifestado nessa altura, mas há aqui uma tempestade perfeita. Os custos aumentaram com a inflação, houve a questão da guerra, o provisionamento dos cereais, os juros, os fatores aumentaram os preços. Tudo isso levou a uma situação que, a nível europeu, explodiu, agora. Com mais pressão, com a Alemanha e houve um efeito de contágio.
A proximidade das eleições para o Parlamento Europeu, em junho, também ajuda.
Também ajuda. Em Portugal isso tudo acontece também com a comunicação, muito em cima do pagamento, que os agricultores não iriam ter, o valor com o qual previam fazer os seus investimentos nas medidas de ecorregime da PAC. Foi tudo junto. Estava lá o fósforo, só faltava empurrar.
Estando agora em pré-campanha, a nível nacional, isso significa que os os agricultores têm melhores perspetivas para conseguir os seus intentos. Ou estando o Governo em gestão, dificilmente poderá satisfazer os seus pedidos?
Em gestão acho muito difícil. Algumas das reivindicações, ou pelo menos a que queriam ver satisfeita, foi o apoio às medidas ambientais da Política Agrícola Comum, do primeiro pilar da PAC, os chamados ecorregimes, que tiveram cortes de 35% a 25% que não estavam à espera. Isso vai ser ressarcido. Há outras queixas que são mais estruturais e que vêm desde o início da governação socialista, desde há oito anos: as florestas que saíram do Ministério da Agricultura, as direções regionais deixaram de estar na tutela direta da ministra da Agricultura e passam para outro ministro. Essas direções regionais são muito importantes, não só no apoio à agricultura, mas na execução das ajudas comunitárias, porque fazem o controlo e a avaliação das ajudas. É um braço armado do Ministério da Agricultura que se perde.
As CCDR não vão ter capacidade para fazer esse acompanhamento, perante a extinção das duas direções gerais?
Até podem ter capacidade técnica, mas o acompanhamento do dia-a-dia, se os controlos estão atempados, estão a correr bem. Tudo isto parte do Ministério da Agricultura. Essa pressão que tem de haver. Quando há recursos limitados, que é o caso do Estado, há opções a tomar. A ministra da Agricultura olha para as suas opções de uma forma diferente da ministro da Coesão. Estes pagamentos mais tardios que andam a acontecer, e que não aconteciam, resultam também de períodos de candidaturas que decorrem sobre um tempo que não era previsto, pelos controlos que não são feitos atempadamente. Tudo isso leva a que o pagamento no final seja mais tardio. O Ministério da Agricultura, nos últimos oito anos, caiu na hierarquia, passou para o fim.
Estes pagamentos mais tardios que andam a acontecer, e que não aconteciam, resultam também de períodos de candidaturas que decorrem sobre um tempo que não era previsto, pelos controlos que não são feitos atempadamente.
Passou a ter menos importância política?
Passou a ter menos importância. E o apoio ao investimento e à modernização das explorações agrícolas, que vem do Programa Desenvolvimento Rural, é muito importante, sobretudo para uma agricultura que está em plena reestruturação, como a portuguesa, em que a taxa de investimento baixou muito. No período entre 2011 e 2015, o montante médio transferido da Comissão Europeia para os portugueses, neste apoio à modernização era à volta de 40 milhões de euros por mês. Hoje são 20 milhões. Houve uma quebra de 50%. Isto tem um impacto direto na modernização da agricultura e no crescimento.
No pacote de 440 milhões que o Governo português preparou para tentar travar os protestos dos agricultores estranha que o Governo tenha optado por medidas que já estavam previstas no Orçamento de Estado, como a descida do gasóleo agrícola — só perante a pressão dos agricultores na rua — e ter tantas verbas já comprometidas para 2025, quando vamos ter eleições em março e não se sabe qual é que o próximo Governo?
Cheira a desespero e reina a confusão. Sinceramente, já perdi o fio à meada. São milhões para aqui, milhões para ali. Estão-se a dar milhões que já se tinha prometido dar. Cheira a desespero. Há uma coisa importante que não está a ser muito falada. Por exemplo, os ecorregimes. Houve uma transferência de umas medidas que estavam no segundo pilar da PAC, que são de gestão plurianual, ou seja, gere-se uma verba para cinco anos, em função da procura para a mesma. Se gasta mais num ano, pode usar do outro ano. Se gasta menos num ano, pode-se deixar para o seguinte. Passou-se isso para o primeiro pilar da PAC, que são medidas de orçamento anual. Não pode haver transferências para os anos seguintes. Neste caso, a medida tinha valores tão elevados que houve um excedente de candidaturas. Estas medidas estando no primeiro pilar tudo o que se passa naquele ano acontece naquele ano. Este ano houve mais candidaturas do que a verba existente. Implicava haver um rateio. Para o ano haverá o mesmo problema se houver mais candidaturas do que a verba existente e para o seguinte também. Isso tem de mudar.
Se os agricultores tivessem sido avisados atempadamente, no período das candidaturas, em junho, se calhar não teria havido esta contestação como há agora. Os agricultores planearam os seus investimentos, os seus custos ao longo do ano em função desta verba. Um terceiro ponto importante é que as medidas do tal segundo pilar da PAC, do programa de Desenvolvimento Rural, têm uma componente comunitária e uma componente nacional. Se meter aqui 10 milhões de euros do Orçamento de Estado, consigo meter 90 ou 80 milhões de financiamento comunitário. Se estivesse bem programado não estávamos a gastar 50 milhões do Orçamento de Estado para pagar 50 milhões. Estávamos a gastar 50 milhões para ter 200 milhões de financiamento comunitário muito mais estrutural. Isto tudo acontece por uma gestão muito em cima do joelho. Voltamos à gestão do WhatsApp e de outros episódios desta governação que não na agricultura, mas que levam a estes casos. A implementação e a gestão do financiamento comunitário da Política Agrícola Comum de um país é um exercício pesado, com grandes volumes de dinheiro, com muitas medidas. Tem de haver um acompanhamento rigoroso e monitorizado ao longo do tempo. Tem de saber quantas candidaturas estão a entrar, que valor representam. São vários serviços que fazem coisas diferentes. Daí a importância das direções regionais. Há que reunir com todos, mensalmente. É quase um exército. São muitos processos. Se isto é feito de uma forma mais política e demagógica, acontecem estas coisas. E Vão continuar a acontecer.
É impreterível haver uma revisão da Política Agrícola Comum? A nível comunitário já parece ser aceite que a PAC, como está desenhada, não funciona
Parece-me que sim. Parece-me que vai ter de haver revisões e reajustes.
O Ministério da Agricultura, nos últimos oito anos, caiu na hierarquia, passou para o fim. Passou a ter menos importância.
Se calhar antes da habitual revisão intercalar da PAC?
Talvez. Sendo que o Regulamento Comunitário é o que é. Se prevê 2025 ou 2026 é aí que será. A não ser que haja mais país que tenham tido problemas de implementação destas alterações. E então haja uma pressão para fazer alguns ajustes. Os ajustes são normais.
E é normal que a ministra da Agricultura se escude no presidente do IFAP para justificar esta situação, alegando que existiu um erro de comunicação por este ter comunicado o corte de 60 milhões nesses mesmos pagamentos?
Quase me dá vontade de dizer “é lá com eles”. Na verdade, a responsabilidade final.
É da ministra.
É da ministra. A obrigação dela é monitorizar com o IFAP, direções regionais, com a Autoridade de Gestão do PEPAC, Gabinete de Planeamento, as várias direções do Ministério. É obrigação dela que monitoriza o que se está a passar. Se há um serviço que não dá essa informação — a mim escandaliza-me que a informação de um corte de 35% ou de um rateio de 35% aconteça no dia do pagamento — então, a responsabilidade é desse serviço. Mas, em última análise, as pessoas escolhidas…. tudo isso passa pela responsabilidade da ministra.
Como é que se pode manter em funções uma ministra durante tanto tempo fragilizada? Os casos foram-se sucedendo ao longo da legislatura. E a CAP, por exemplo, na negociação dos apoios à produção no âmbito do IVA zero só aceitou negociar diretamente com o primeiro-ministro.
Desvalorizando o setor agrícola. O primeiro-ministro António Costa, na verdade, não tinha a agricultura como centralidade das suas políticas. Se calhar até dá jeito, porque assim pode passar algumas partes que estavam no Ministério da Agricultura para outros ministérios.
Apoio ao investimento e à modernização das explorações agrícolas baixou muito. Entre 2011 e 2015, o montante médio transferido da Comissão para os portugueses, rondava os 40 milhões por mês. Hoje são 20 milhões. Houve uma quebra para 50%. Isto tem um impacto direto na modernização da agricultura e no crescimento.
Como é que interpretou as declarações do líder parlamentar do PS, Eurico Brilhante Dias, quando disse que a ministra cometeu um erro que só foi corrigido por pressão da rua e que já não havia forma de o Governo se libertar desta imagem? Parece-lhe que é o próprio PS também a deixar cair a ministra e tentar ganhar aqui algum espaço de manobra num período de pré-campanha?
Parece-me que é tentar descartar-se do problema. Está a acontecer em escada. O caso de Eurico Brilhante Dias a tentar descartar-se do problema que a ministra criou e a ministra a descartar-se do problema, culpabilizando o presidente do IFAP, quando na verdade a responsabilidade é de todos.
Ficou surpreendido com esta capacidade de organização destes movimentos inorgânicos que, através de grupos de WhatsApp, conseguem parar o país, de norte a sul, durante vários dias?
Não fiquei e fiquei. Não fiquei, porque o setor agrícola é já muito antigo, com o setor associativo, que representa também o antigo, e que está habituado às manifestações, porque tem uma política única, comum, muito centralizada no setor. Manifestações que vêm da Europa já acontece. Sou de uma família de agricultores e lembro-me das manifestações, de ir à feira de Santarém, há coisas que fazem parte um pouco do setor. Aqui o que muda é a forma espontânea como estas manifestações ocorreram. Isto já tem a ver como mudar dos tempos. WhatsApp criam grupos muito rapidamente. Isto é uma mudança, também é um desafio.
E porque os agricultores sentem que não estão a ser tão bem representados pelas associações que existem no país?
Talvez a representatividade ao nível dos serviços tenha sido um fator mais presente na vida das associações e menos estas lutas na rua ou estas manifestações. Houve velocidades diferentes. Foi importante negociar estas ajudas e conseguir uma compensação para os agricultores.
Os 60 milhões foram negociados diretamente com o primeiro-ministro.
Aqui não me parece que tenha havido velocidade suficiente das Confederações. Aconteceu um pouco o mesmo em França e em Espanha. Foi tudo muito rápido.
[Pacote de 440 milhões] cheira a desespero e reina a confusão. Sinceramente, já perdi o fio à meada. São milhões para aqui, milhões para ali. Estão-se a dar milhões que já se tinha prometido dar.
Acredita que está a haver um aproveitamento político por parte de movimentos de esquerda e de extrema-direita destas manifestações?
Não. Não acho que seja aproveitamento. Está à vista de todos e todos podem cavalgar esta onda, porque a onda está para ser cavalgada. Há um problema de tratamento público do setor agrícola. É um setor muito importante, tem 2/3 do território às suas costas. Tudo o que faz tem um impacto na vida das pessoas e no ambiente. É um setor, diria, quase sensível. E, no fundo, houve aqui um abandono político. Portanto, é normal que isso aconteça. Além de que o setor também foi mal tratado. Chegam as eleições e ou é muito bem tratado ou é maltratado. Houve aí umas eleições, acho que foi há três eleições, parecia que agricultura era o bode expiatório. Era a questão a ser discutida, o olival super intensivo, os amendoais super intensivos. Estava tudo em discussão e acho que aí a agricultura até foi bastante mal tratada, de forma injusta. Portanto, é normal que agora haja um certo cavalgar da onda.
Num próximo executivo, seja ele do PS, PSD ou seja qual for a geometria variável possível após estas eleições, terá sempre de haver um Ministério da Agricultura politicamente mais forte?
No mínimo, tem de se recuperar o que estava. No mínimo, as florestas e direções regionais têm de voltar. Depois se deve ter uma parte da coesão ou não, se se deve juntar com o ambiente, é tudo questionável porque tem tudo vantagens e desvantagens. Mas, no mínimo, tem de voltar a ter as florestas, tem de voltar a ter as direções regionais e quiçá ter uma parte também de conservação do território ou conservação da natureza.
Quando vê na televisão alguns dos manifestantes dizerem que desde a ministra Assunção Cristas que mais ninguém tratou bem os agricultores. Como é que se sente quando ouve comentários desses? O que é que Assunção Cristas fez de tão diferente que permite, ao fim de todos estes anos, alguns agricultores ainda se lembrem da política dela?
A primeira coisa que se fez nessa altura foi trazer muita disciplina no processo de transferência dos apoios da Política Agrícola Comum. Isso é a primeira coisa que os agricultores sentem: o apoio a ser recebido está a chegar a tempo e horas. Houve alterações algo profundas que era bom que se tivessem mantido: os pagamentos aos agricultores que eram sempre no último dia do mês, os pagamentos dos apoios diretos eram sempre feitos em dezembro. Isto, claro, criava pressão para fazer mais. Mas trouxe disciplina aos pagamentos.
Não me parece tenha havido velocidade suficiente das Confederações. Aconteceu um pouco mesmo em França e em Espanha. Foi tudo muito rápido.
Trouxe previsibilidade aos agricultores.
Houve uma grande mudança, que foi o Alqueva. Aumentámos a área de regadio de 60 mil hectares para 120 mil hectares. Foi muito importante e foi feito com financiamento dos fundos estruturais. Salvaguardou orçamento para a agricultura. Antes o Alqueva tinha sido financiado com a Política Agrícola Comum. Conseguiu-se uma mudança, foi buscar financiamento aos fundos estruturais. Daí muitas das queixas agora que o PRR financia muito pouco da agricultura. Naquela altura, para o Governo inteiro era tão importante a agricultura, como outras áreas, que se considerou útil ir buscar financiamento dos fundos estruturais para a agricultura. Até foi difícil convencer a Comissão Europeia.
Acho que o terceiro elemento foi a comunicação. A comunicação era muito positiva. Havia um investimento em comunicação. A assunção Cristas quando ia a explorações agrícolas levava a comunicação com ela. Muitas das comunicações do que era feito, era nas explorações. E havia um diálogo positivo com os agricultores. Na altura também ouvíamos queixas. Mas agora, olhando para trás, há essa avaliação, foi um período bom. Tudo isto é uma auto-avaliação. Mas há algo que é uma constatação, que são factos: nas últimas duas décadas, o período em que a agricultura mais cresceu foi entre 2011 e 2015.
O artigo foi publicado originalmente em ECO.