O sudoeste alentejano tinha uma das maiores concentrações de charcos temporários mediterrânicos, um habitat raro, frágil e prioritário na conservação, mas metade foram destruídos, alerta a bióloga Paula Canha.
Professora na escola secundária de Odemira, Paula Canha faz parte da Sociedade Portuguesa de Botânica e tem feito estudos na zona do Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina (PNSACV) em colaboração com a Universidade de Évora, mas também para empresas agrícolas.
Parte do PNSACV é também uma zona de agricultura intensiva, especialmente no concelho de Odemira e visível nas centenas de hectares de estufas. A bióloga é muito crítica do que se passa na região, diz que a lei não é cumprida e que há atentados ambientais, mas também frisa que há ali empresas “com uma postura responsável”.
A poucos dias de se comemorar o Dia Mundial da Biodiversidade (no sábado), a bióloga falou à Agência Lusa dos crimes no PNSACV relacionados com a diversidade biológica, um dos quais nos charcos temporários, sobre os quais incidiu a sua tese de mestrado.
Nesse âmbito, ao fazer um levantamento dos charcos existentes, descobriu que “mais de metade já tinham sido destruídos” em relação a 1998, por drenagem de terrenos e terraplanagens, ou transformados em charca agrícola. E há muitos eutrofizados, por receberem fertilizantes que escorrem das plantações de frutos vermelhos que existem no PNSACV.
Os charcos temporários, considerados prioritários para a conservação no âmbito da Rede Natura 2000, uma rede de conservação da natureza a nível europeu, são locais que têm água durante três a cinco meses e no resto do ano um habitat terrestre.
“Normalmente os seres vivos ou são aquáticos ou terrestres, e os que estão nos charcos são especiais porque conseguem passar uma parte do tempo em ambiente aquático e o resto em ambiente terrestre. O que quer dizer que têm estratégias muito originais para sobreviver, um património genético criado pela evolução ao longo de milhões de anos que lhe permite aguentar tantos meses de secura”, explica a bióloga.
Esse património genético, frisa, pode mesmo vir a ser importante, para os humanos até, no âmbito das alterações climáticas, e tem de ser preservado.
Mas, acrescenta Paula Canha, além das plantas e animais únicos, os charcos temporários têm a particularidade também de serem locais privilegiados para a reprodução de anfíbios (sapos, rãs, salamandras e tritões), porque neles não existem peixes nem lagostins, predadores dos ovos e das larvas.
Esses anfíbios, na fase terrestre, ficam em locais abrigados perto dos charcos quando secos. A bióloga aponta que devido às alterações climáticas serão dos grupos mais ameaçados, outra razão para preservar os charcos, “absolutamente essenciais” para a reprodução.
“Quando um charco desaparece todos os anfíbios adultos à volta acabam por morrer”, alerta a especialista. E há, diz, pelo menos duas espécies de animais minúsculos que só existem nos charcos temporários da costa sudoeste, o ‘Triops vicentinus’ (um crustáceo) e uma espécie de camarão-fada. “São únicos no mundo” e o primeiro é um fóssil vivo, assim chamado porque existe desde o tempo dos dinossauros.
Na zona do PNSACV os charcos foram muito divulgados através do projeto LIFE Charcos, aprovado pela Comissão Europeia e coordenado pela Liga para a Proteção da Natureza (LPN). Mas o Parque é também único em termos de flora, nas palavras de Paula Canha.
“Não há nenhum parque ao nível do país que seja tão rico como este em termos de espécies que só existem aqui e em mais sítio nenhum do mundo. Nisso o PNSACV é o mais importante, e estamos longe de termos descoberto tudo o que temos. No ano passado descobriu-se uma planta nova. Temos 40 e tal espécies raras e, dessas, 17 só existem aqui”, descreve.
No PNSACV, lembra a bióloga, existem outros habitats prioritários não tão conhecidos como os charcos, como o zimbral das dunas (prioritário na Rede Natura 2000), um tipo de zimbro que no mundo só existe entre Setúbal e a Carrapateira, concelho de Aljezur.
Afirmando que todos estes habitats e espécies estão concentrados na faixa litoral, ligados à zona das dunas e pinhais (alguns também típicos das serras), Paula Canha alerta que não tem havido ações de conservação destas espécies.
“Existe uma legislação que não é cumprida, não há fiscalização” e quem prevarica paga uma multa, mas não tem de repor a situação inicial.
“No fundo, a comunidade europeia paga a Portugal avultadas somas para que nós conservemos estes valores, que nos comprometemos a conservar, e não sabemos para onde vai esse dinheiro, porque ações aqui no terreno, as que conheço, são feitas pelas universidades, sobretudo de Évora, por voluntários, e por algumas organizações de cidadãos”, afirma.
E acrescenta de seguida: “Tirando isto e uma ou outra ação da autarquia o dinheiro que vem da rede Natura 2000, nós que estamos aqui, não sabemos em que é usado”.
Segundo Paula Canha, não só não há uma política ativa da gestão desses valores como a agricultura intensiva na região está a afetar o património natural.
“Mesmo que se cumprissem todas as regras que estão no plano de ordenamento do parque, mesmo assim havia impactos sobre esta biodiversidade”, avisa.