Na primeira vez em que usei o mercado do pão numa discussão sobre as virtudes e defeitos dos mercados na prestação de bens sociais, por contraponto à apropriação colectiva dos meios de produção, disseram-me que eu estava a ser demagógico.
Quando Mariana Mortágua disse que foi o mercado que nos trouxe a esta crise de habitação, querendo dizer que por isso não valia a pena contar com o mercado para a resolver, lembrei-me, pela enésima vez, do mercado do pão.
A razão principal para me ter lembrado outra vez do pão, a propósito da conversa de Mariana sobre habitação, foi a lembrança de uma lei de um tempo em que nem a avó de Mariana tinha nascido, uma lei que tinha uma ideia muito semelhante à de Mariana sobre o mercado das casas.
Elvino de Brito, preocupado com a entrada de cereais mais baratos que os produzidos em Portugal, pensou exactamente como Mariana: impedimos os cereais de entrar e resolvemos o problema do abastecimento de cereais, impedindo a ruína dos produtores nacionais.
A discussão não era, já nessa altura, nova, bem pelo contrário, era uma discussão secular que ainda hoje rende votos. Por exemplo, é a mesma ideia em que se baseia o Chega para dizer que a TAP deve ser do Estado, para garantir que o país tem soberania sobre qualquer coisa.
Como dizia, há séculos que a garantia de abastecimento de pão era considerada uma questão central de soberania e viabilidade dos países, levando a leis como a das Sesmarias, em que a coroa se propunha intervir nas terras abandonadas, para garantir que produzissem.
Quando a questão deixou de ser a escassez (esse era o problema maior antes do crescimento do comércio internacional) e passou a ser a protecção da produção nacional, que teria de existir para o país ser viável e soberano, entraram em cena as leis aduaneiras para protecção dos mercados nacionais (questão que também existia há séculos, para produtos específicos).
O novo mundo passou a produzir cereais mais baratos que grandes partes da Europa, e em quantidade suficiente para os exportar, e os países menos competitivos na produção de cereais responderam com leis proteccionistas, de que a tal lei de Elvino de Brito foi das primeiras na Europa.
O que Mariana não terá reparado é que essa lei passou a ser conhecida como “lei da fome” porque o conjunto de regras de protecção de uma produção ineficiente de um bem essencial, o pão, teve como resultado a escassez do produto e consequente aumento de preços.
Fácil, dirá Mariana, se o mercado especula com a escassez, controlam-se os preços.
Os mercados, que na verdade são feitos pelas decisões quotidianas das pessoas comuns, nunca sendo perfeitos, obedecem a alguma racionalidade: se a produção é ineficiente e o preço é artificialmente baixo, não compensa o produtor produzir o bem em causa. Ou abandona a actividade, ou muda de sector de produção, portanto, o consumidor passa fome (é exactamente isto que se passa hoje no mercado da habitação em Portugal, nalgumas zonas do país, sobretudo Lisboa, Porto e Algarve).
Historicamente a produção de pão já foi gerida, em dezenas de contextos, como Mariana quer gerir a habitação, sempre, sempre, com o mesmo resultado: escassez de pão.
E, no entanto, nesta campanha eleitoral, ninguém discute o abastecimento de pão, que é uma coisa absolutamente essencial.
E não discute porque o mercado nos trouxe até onde estamos no mercado de pão: disponibilidade, variedade, preços baixos e preços altos, produtos mais diferenciados e mais massificados, mas globalmente toda a gente tem acesso a pão.
Há uma pequena franja só tem acesso porque o Estado e a filantropia, lhe garantem esse acesso, mas ninguém, nesta campanha eleitoral, veio defender a nacionalização das padarias, o aumento de impostos sobre os lucros das padarias, o estabelecimento de uma rede de padarias do Estado, como formas de resolver esse problema social, toda a gente concorda que a solução está no aumento de rendimentos e nas políticas sociais, porque para a esmagadora maioria da população, o abastecimento de pão está razoavelmente resolvido pelo mercado.
O agricultor é dono da sua terra que procura rentabilizar da melhor forma prosseguindo o seu interesse individual, os que compram cereais são privados que procurando responder aos seus interesses individuais são obrigados a fornecer cereais à indústria a preços que os consumidores possam pagar, os moageiros, prosseguindo o lucro e o seu interesse individual, fornecem farinhas a preço que as pessoas comuns podem suportar, os padeiros fabricam pão a preços razoáveis, embora persigam o lucro e o seu interesse individual e as padarias, incluindo as grandes cadeias de distribuição ou o café de bairro, sempre procurando o lucro e os interesses dos seus donos, fornecem pão a preços razoáveis, respondendo tanto a quem só quer o pão mais barato possível, como o gestor hospitalar, como a quem quer um pão de trigo barbela fermentado lentamente a partir de massa velha e cozido num forno a lenha.
Tudo isso o mercado de pão faz, com todos os operadores perseguindo os seus interesses.
A ideia de que tudo isto funcionaria melhor com Mariana a determinar o juro a que os financiadores podem emprestar o dinheiro ao agricultor, perseguindo o lucro de cada um dos operadores chamando borla fiscal a qualquer diminuição da parte que o Estado recolhe para si em cada passo da cadeia de abastecimento, determinando a criação de padarias do Estado a preços ficcionados cujo pagamento viria dos impostos que limitariam os lucros que Mariana achasse excessivos, perseguindo os que fossem mais eficientes, capazes de crescer mais, pagar mais aos seus trabalhadores, investir mais na melhoria de processos apenas porque sendo maiores geram um maior volume de lucros (nem sequer considerando a relação entre lucro e capital investido, como gosta de fazer Mariana) é uma ideia que me parece um bocadinho ingénua.
O problema está bem à vista no mercado da habitação, em que o grau de intervenção do Estado é incomparavelmente maior que no mercado do pão, quer no acesso à licença, quer nas exigências administrativas (que mesmo no mercado do pão, apesar de serem menores, estão a gerar tensões como temos visto nestas últimas semanas), quer na perseguição ao lucro e à criação de riqueza.
Sim, foi o mercado que nos trouxe à crise da habitação, mas este mercado em concreto, que existe com as regras que existem, outros mercados mais eficientes, com regras diferentes, provavelmente levar-nos-iam a sítios diferentes.
Afinal, foi o mercado que nos trouxe a esta crise para alguns, é certo, mas também foi o mercado que deu habitação a todos os outros que a têm neste momento, que são muitos mais.
O artigo foi publicado originalmente em Corta-fitas.