Um dia destes, o Público (mas podem encontrar-se peças semelhantes em qualquer jornal que tenha pegado no assunto) perguntava no título de uma peça (cada vez tenho mais dificuldade em chamar notícias a muito do que aparece nos jornais): “A Comissão Europeia tem medo dos lobos? Não parece ser caso para isso”.
Por que razão esta peça da jornalista Clara Barata não me parece que seja uma notícia, embora se refira a um assunto de actualidade que até merece atenção por parte de jornais?
A base noticiosa existe e é clara: “A Comissão Europeia abriu um processo de consulta … para avaliar a alteração do estatuto de protecção dos lobos”.
Vamos saltar pela minudência técnica de que o que existe são estatutos de ameaça, com base na qual se estabelecem medidas de protecção porque, no essencial, toda a gente percebe o que quer dizer a frase acima, com que começa a peça do jornal.
O caldo entorna-se logo na frase seguinte: “cedendo aos grupos de pressão de agricultores e caçadores, que se queixam dos impactos destes grandes carnívoros sobre o gado”.
A jornalista, afinal, não pretende informar os seus leitores sobre a existência deste processo de consulta, sobre as razões da sua existência, sobre as razões dos diferentes grupos sociais interessados no assunto, sobre a dinâmica da espécie conhecida, nada disso, o que a jornalista faz, na sua peça, é doutrinação a partir de um ponto de vista, o ponto de vista do que se opõem a essa discussão sobre a situação das populações de lobo na Europa, os efeitos da sua dinâmica na sociedade e as melhores soluções para gerir os problemas dela decorrentes.
O essencial da informação desta peça do jornal é coerente com o conteúdo de um mail que recebi do grupo Lobo: “O Grupo Lobo vem expressar a sua preocupação relativamente ao comunicado emitido no passado dia 4 de setembro pela Comissão Europeia (CE) sobre a necessidade da revisão do estatuto de proteção do lobo na Europa. A informação contida no documento é infundamentada e mostra falta de conhecimento sobre o lobo, podendo mesmo contribuir para gerar alarme social e desviar o foco da necessidade de se promover a coexistência pacífica com esta espécie e, até, colocar em causa a sua recuperação.”
Sem surpresa, lá está o parágrafo dramático do costume: “Em Portugal, o lobo está Em Perigo (EN), estando protegido por legislação específica desde 1988 (Lei n.º 90/88, de 13 de agosto), regulamentada pelo Decreto-Lei n.º 54/2016 de 25 de agosto, e encontra-se circunscrito às zonas mais montanhosas do norte e centro do país, ocupando apenas cerca de 20% da sua área de distribuição original, sem sinais de expansão nos últimos 30 anos. Estima-se que existam apenas 300 lobos em território nacional, sendo que a espécie continua ameaçada pela fragmentação do seu habitat e a perseguição direta pelo Homem” (a jornalista do Público é mais cautelosa e não se mete por este caminho, de forma explícita).
Qual é o problema?
É estar a omitir-se o essencial sobre a realidade das populações de lobo na Europa.
A jornalista do Público, nessa matéria não tem dúvidas: “Mas não só a população de lobos na Europa ainda não recuperou o suficiente para aliviar a protecção desta espécie, como a ciência desmente que a caça aos lobos faça diminuir o número de ataques ao gado, dizem especialistas em lobos e organizações ambientalistas europeias”.
Pelo contrário eu tenho muitas dúvidas sobre este argumento que a jornalista cita e que acho extraordinário: se a caça não diminui o número de ataques ao gado (e eu também acho que não diminui), isso quer dizer que a discussão sobre a caça é irrelevante para a conservação do lobo, visto que mesmo com caça ele vai continuar a andar por aí e a atacar gado.
A situação da população de lobos na Europa é de fortíssima expansão em muito pouco tempo (por exemplo, é dar uma vista de olhos nas páginas 60 e seguintes desta publicação da Rewilding Europe, uma organização de conservação que fala de um “remarkable return“, a propósito do lobo na Europa) como, para não citar dados dos tais grupos de pressão que incomodam a jornalista do Público, se pode ler no relatório “Assessment of the conservation status of the Wolf (Canis lupus) in Europe”, cuja introdução cito largamente para se ter a noção do que está em causa:
“In the last 50 years, wolf populations across Europe have shown a remarkable capacity to take advantage of changing circumstances and landscapes and of new opportunities to reoccupy large areas of suitable habitat. In the last decade only, an increase of over 25% of wolf range has been reported in Europe (Cimatti et al., 2021). After having experienced a severe reduction in the first half of the 20th century, the wolf has become a protected species in many European countries where it had not been extirpated and from where it underwent a relatively rapid increase (Chapron et al., 2014). This expansion is still continuing and has been supported by a set of international conventions, which modified the wolf status from that of pest species to conservation priority, creating the conditions for their legal protection at the national level. The expansion was mainly due to a series of larger social, economic and historical processes, such as reforestation and the progressive abandonment of agricultural land (Cimatti et al., 2021), which reduced human impacts and released space for large carnivores and their wild ungulate prey. The return of the wolf in so many countries, though, does not come without an impact on human activities. On one hand, given the absence of large areas of wilderness in Europe (Venter et al., 2016), wolves have almost entirely re-established their populations in highly human-modified landscapes, where humans raise livestock, hunt wild ungulates, and use forests and mountains for tourism and recreation (Chapron et al., 2014, Bautista et al., 2019). Currently, permanent wolf ranges are characterised by an average density of 90 persons/km², which reflects a high degree of adaptation to human presence. On the other hand, wolves often pay a high price to sharing space with humans, as witnessed by the persistently high levels of illegal killing in several European countries (Kaczensky et al., 2012), often associated with low levels of trust in policies and wider social conflicts”.
Ao contrário do que pretende a jornalista do Público (e a generalidade dos jornalistas que se debruçaram sobre o assunto), há mesmo razões fortes para a discussão sobre a melhor forma de gerir a rápida e poderosa expansão do lobo na Europa, e a discussão sobre a caça ao lobo é completamente marginal nas actuais circunstâncias.
Em Portugal as entidades que são responsáveis por esta gestão continuam a produzir informação com a tese do oásis, pretendem que a ciência, os dados, os censos, demonstram que a população de lobo está em perigo, isto é, que apesar da população de lobo na Europa, incluindo Espanha, se expandir à boleia do processo de renaturalização que está a ocorrer em consequência do abandono rural, Portugal, um dos países europeus em que o abandono rural é mais profundo e a recuperação dos sistemas naturais é mais evidentes, com contínuas notícias de presença de lobo em áreas em que não estava presente há décadas, a população de lobo continua “sem sinais de expansão nos últimos 30 anos”, como diz o grupo Lobo, imitando o famoso ministro iraquiano de Saddam Hussein a negar a êxito militar americano na invasão do Iraque.
Negar a realidade nunca foi a melhor maneira de conseguir optimizar socialmente as soluções para gerir um problema, mas que fazer, quando não parece haver qualquer vontade das entidades de tutela, da academia e dos jornais em abandonar as histórias da carochinha que justificam o status quo?
O artigo foi publicado originalmente em Corta-fitas.