Um dia, Domingos Alves de Sousa andou amavelmente a passear-nos, à Mariana e a mim, pelo seu Douro: partimos e chegámos os três à Gaivosa tendo percorrido vários torrões, chãos da sua visão e do seu sonho. Não era a primeira vez que me explicava a razão de ser do seu desenvolvimento de projectos. Viticultura, vinicultura, comércio dos seus produtos – vinho e turismo. Ciência, ciência aplicada, contas e valorização de todo o trabalho, transformado no final por uma transação remuneradora do esforço. Com um justificadíssimo orgulho, palavras de satisfação com que nos expunha de forma explícita (intuíamos o muito mais implícito) as suas ideias das vinhas, adega, dos projectos para expansão alimentados desse sucesso. Mas havia mais: no fim da visita, além de garrafas, Domingos Alves de Sousa ofereceu-nos livros e, ao estender-no-los, após a dedicatória, notei no seu gesto o cumprimento dum imperativo interior, de que queria (duma forma pessoana, intencional ou não) imbuir a sua agricultura (porque de agricultura se trata), a sua indústria (porque de indústria se trata), o seu comércio (porque de comércio se trata), a sua ciência (porque de ciência se trata) e a sua arte (porque de arte se trata) dum elevado e íntimo sentido de cultura. Porque de cultura se trata. A história do Douro é uma história de cultura. E a Cultura desenvolvida pelo homem no Douro, com a sua História, é que dá sentido e carácter a que a cultura da vinha e a produção dos vinhos aqui se torne distinta, única e cheia de personalidade.
O que escrevo não é novo, o Douro, Rio, Gente e Vinho, do António Barreto, é uma das mais holísticas e compreensivas visões e testemunhos de vidas sobre o Douro que o mesmo Douro tem a incrível sorte de alguém ter escrito sobre si. Revisitar este livro, palpando cada palavra nas encostas e nuns copos, é sempre um excelente exercício de recapitulação cultural sobre a ciência, a história e o esforço humano empregues no rio, nos seus afluentes e no labor e destinos dos seus produtos. Como, tranquila e emocionalmente, foi explicado pelo autor na sessão no IVDP em que foi apresentada a edição vingt ans après, há quase uma dezena de anos, em que estivemos presentes.
A coleccção de dados via satélite, a sua integração coerente em informação, a capacidade de ser proporcionada ao serviço da sustentabilidade da produção vitivinícola, foi, há dias, apresentada pela Symington, no Bonfim, sob a forma duma plataforma, já comercial, a VitiGEOSS. A conversão de informação em conhecimento, tornado útil pela engenharia, utilidade esta que a necessidade prática e o design inserem em comportamentos empresariais e em contextos culturais, conceptualizados depois em arte e gerando riqueza com todo o processo, é o Douro funcionando organicamente, desde as suas raízes até ao balcão donde os turistas podem sentir o voo dum sonho ao beber um Porto ou assistir ao por-do-sol – ou ambas as coisas! Deste funcionamento orgânico fazem parte todos os pequenos e grandes viticultores, a anónima e a notável humanidade do Douro.
No terraço do Espaço Porto Cruz, em Gaia, há dias bebemos um extraordinário viosinho da Quinta de Ventozelo num cocktail especialíssimo. Estivemos lá a convite duma entidade estruturalmente especialíssima, em que se pressente o mesmo sentido que dissemos sobre a nossa ida à Gaivosa, sobre todas as páginas de António Barreto, sobre cada permanente inovação científica e tecnológica da Symington (sempre à frente!), sobre cada molécula que faz funcionar, organicamente, o Douro: os Amigos de Ventozelo. Recolhidos numa sessão cheia, durante a tarde, tinha decorrido a “Sétima Conversa em Ventozelo” no Convento Corpus Christi, com o Douro como público, em que foi discutida A Nova Economia do Douro e apresentado o Manifesto de Ventozelo.
Um privilégio, podermos estar ali sob a abóbada do conhecimento, bebendo palavras sábias que os oradores puseram à disposição duma plateia ilustre. Foi enorme o alcance da visão de Jorge Dias em congregar os Amigos de Ventozelo e, sob a presidência de Manuel Cabral, dotá-los das condições materiais para a produção de pensamento, pensamento sobre o Douro, a economia do vinho e a governança das DO e IG, a necessidade de imigração para a região, a articulação da História, Cultura e Património reconhecido e por reconhecer, da promoção das marcas e da região, da sustentabilidade económica, ambiental e social da RDD. Privilégio de estar ali e privilégio de ler o Manifesto de Ventozelo. Um apelo e apontar de direcção que, antes de mais, suscita a nossa intuição duriense. O Manifesto de Ventozelo é a síntese consequente de pensar, pensar como homem de acção e agir como homem de pensamento. O Manifesto de Ventozelo propõe uma verdadeira articulação regional de entidades e actores. Ao ler-se, sente-se a inspiração de quem olha para uma paisagem onde se vê o espaço e se sente o tempo (como aconteceu no decurso das Conversas em Ventozelo). E quem olha e sente o tempo e o espaço do Douro, é impossível não se fazer orgânico de tudo, do Rio, Gente e Vinho.
Poder-se-ia simplicar: a sustentabilidade do Douro, sendo económica, ambiental e social, seria, sobretudo, uma sustentabilidade cultural. E isso seria verdade, mas não total. Para ser total, a sustentabilidade do Douro tem de ser Humana. Como humanista é, em toda a sua extensão, o Manifesto de Ventozelo.
Consultor e escritor, ex Director Regional de Agricultura e Pescas do Norte, 2011-2018; ex Vice-Presidente do IVV, 2019-2021