Não me parece ser demasiado arriscado afirmar que a generalidade da população, mesmo a que nada sabe, nem nunca teve contacto com a agricultura, facilmente compreende que a actividade agrícola é caracterizada por um nível de volatilidade consideravelmente acima da média. Além de estar sujeita a alterações súbitas da conjuntura económica e alterações inesperadas na cotação dos produtos que comercializa, um agricultor pode ser vítima de condições climatéricas adversas, tempestades e desastres naturais, acidentes, pragas, contaminações e um conjunto de outros fenómenos de natureza similar. Está completamente a mercê de factores sobre os quais não exerce qualquer controlo, mas que podem deitar por “terra” o trabalho de um ano inteiro – ou de vários anos.
Talvez por isso se compreende ou, pelo menos, se tolere, que na agricultura os salários pagos sejam relativamente baixos quando comparado com outros sectores de actividade económica. Os prejuízos de um só mau ano agrícola, podem não ser compensados pelos lucros de meia dúzia de anos positivos.
Os produtores agrícolas, cujo número vai aumentando de ano para ano, sentem cada vez maiores dificuldades em encontrar a mão de obra sazonal necessária, a qual, por um complexo conjunto de motivos, vai diminuindo de ano para ano. Isto é, a procura aumenta, no entanto, a oferta vai decrescendo. Obviamente, trata-se de um desafio para o qual o agricultor vê-se obrigado a encontrar uma solução.
Todos os anos, por opção, ou em desespero de causa, um número significativo de produtores agrícolas recorre a Empresas de Trabalho Temporário (ETTs – CAE 78200) ou empresas de prestação de serviços agrícolas (CAE 01610) para responder às necessidades de mão de obra, sobretudo nos picos de produção agrícola.
Outros produtores agrícolas recorrem sistematicamente a mão de obra clandestina, não declarada e ilegal, normalmente trabalhadores de países da Europa do Leste (Roménia, Bulgária, Moldóvia, Ucrânia, Cazaquistão, Uzbequistão, etc.) habituados a fazer a longa peregrinação a Portugal para ganhar umas coroas, trabalhando à “jorna”, sujeitando-se, frequentemente, a abusos, sem seguro de acidentes de trabalho, nem protecção na saúde, para ganhar, normalmente, 25 a 30 euros por dia pago em dinheiro vivo (e, por vezes, nem isso recebem).
Para os trabalhadores clandestinos, preocupados em meter mais dinheiro possível ao bolso e, para o agricultor, preocupado que saia o menos dinheiro possível do seu, pode até parecer um bom negócio. Quem mais perde? O Estado. E, o “Estado” somos nós, os contribuintes.
As autoridades, nomeadamente o SEF e a ACT, têm sido projectadas na imprensa como o “caça-exploradores”, “resgatando” trabalhadores estrangeiros sujeitos a maus tratos, exploração ou situações tráfico de pessoas. Não só as versões dos factos e dos acontecimentos apresentados pela imprensa – obviamente, mais interessada em “inflamar” que informar – não correspondem à realidade ou, seguramente, não contam toda a realidade, como assumem uma posição acrítica no tocante à responsabilidade do Estado relativamente ao fenómeno do trabalho clandestino.
A inércia, ausência de articulação, má vontade e falta de capacidade de resposta por parte do IEFP, SEF, ACT, bem como, postos e secções consulares, obrigam os produtores a recorrer à mão de obra clandestina, sob pena de perder o “fruto” de um ano (ou vários anos) de trabalho e o significativo investimento realizado. Esperemos que o novo regime de concessão de visto para trabalho sazonal a cidadão de país terceiro permita reduzir o recurso a mão de obra clandestina por agricultores em desespero de causa. A ver vamos.
Há cerca de três anos fui gerente de uma ETT, por mim constituída, focada unicamente na cedência de mão de obra para utilização temporária a produtores agrícolas em todo o país – predominantemente, no Alentejo e Algarve. Na altura a RMM era 505€ e o custo da mão de obra cedida com todos os encargos sociais legalmente exigíveis era, no mínimo, 5,25€ por hora normal de trabalho.
Causava-me espanto o número de produtores que recusavam as propostas apresentadas pela ETT da qual era gerente alegando ter optado por propostas igual ou inferior a 5€/hora com alojamento e transporte incluídos! Recordo-me que dois produtores confessaram ter optado por propostas de 4,5€/hora apresentadas por sociedades de prestação de serviços agrícolas constituídas e geridas por cidadãos asiáticos. Pensava para mim “isto é de loucos”.
Situemo-nos no presente – 2018 em que a RMM foi fixada em 580€. O custo LEGAL da mão de obra cedida para utilização temporária por parte de terceiros é, no mínimo dos mínimos, 5,98€ por hora normal de trabalho – isto partindo do pressuposto que se consiga um excelente preço na apólice de acidentes de trabalho e exame médico quase de borla (aliás, é o custo para qualquer empregador – incluindo, naturalmente, os produtores agrícolas, não apenas para as ETTs).
Uma ETT que ceda, em 2018, um trabalhador a 6,5€/hora terá, teoricamente e, no cenário mais cor de rosa imaginável, um “lucro” mensal de 95€ por trabalhador. Em 50 trabalhadores cedidos terá, reitero, num cenário extraordinariamente idílico, um “lucro” de 4750€.
“Lucro” ou prejuízo? Convém não esquecer que os custos com os supervisores ou chefes de equipa, o director técnico, o pessoal administrativo, os representantes comerciais, da contabilidade, do jurista, da renda, custos e consumíveis do escritório, das telecomunicações, do IRC, do transporte e alojamento, de manutenção e reparações de veículos e habitações entre outras despesas, têm que ser suportados por esse “lucro” de 4750€. É óbvio que não chega para cobrir as despesas e, questiono, será que os sócios de uma ETT trabalham para “aquecer”?
É absolutamente fundamental que os produtores agrícolas tenham consciência das terríveis consequências que poderão enfentar por terem celebrado contratos com ETTs e, ainda mais, com empresa de prestação de serviços agrícolas que praticam preços “impraticáveis” ou insustentáveis
As ETTs são obrigadas a manter, no mínimo, uma caução de quase 80 mil euros (pode ser muito superior em função do número de trabalhadores constante no mapa de férias), porém, as empresas de prestação de serviços agrícolas podem ter como sede uma residência familiar e serem constituídas com capital social de apenas 1 euro. Obviamente, o que está em causa não é o montante do capital social, nem se uma sociedade tem, ou não, como sede uma morada residencial. Há sociedades exemplares cuja sede é, para todos os efeitos práticos, uma “Cloud”.
As ETTs estão sujeitas a regulamentação e, nos casos de incumprimento em relação ao pagamento de encargos salariais, contribuições à Segurança Social, dívidas à Autoridade Tribiutária, contraordenações, etc., o IEFP, I.P., manda primeira accionar a caução obrigatória sob o seu poder (como referido,no mínimo, perto de 80000€) e, apenas se esta se revelar insuficiente, poderá haver reversão contra o produtor que beneficiou da mão de obra cedida. No caso das empresas de prestação de serviços agrícolas (CAE 01610), a regulamentação é inexistente, e o produtor não pode contar com a “almofadinha” que a caução da ETT representa e que sempre traz algum conforto – apesar de não eliminar, de modo algum, o risco – este está sempre presente em qualquer negócio.
O n.º 5, do art.º 198.º da Lei n.º 23/2007, de 4 de julho (alterada pela Lei n.º 102/2017, de 28 de agosto) refere que
“O empregador, o utilizador por força de contrato de prestação de serviços, de acordo de cedência ocasional ou de utilização de trabalho temporário e o empreiteiro geral são responsáveis solidariamente:
a) Pelo pagamento das coimas previstas nos números anteriores e dos créditos salariais emergentes de contrato de trabalho, da sua violação ou da sua cessação;
b) Pelas sanções decorrentes do incumprimento da legislação laboral;
c) Pelas sanções decorrentes da não declaração de rendimentos sujeitos a descontos para a administração fiscal e para a segurança social, relativamente ao trabalho prestado pelo trabalhador estrangeiro cuja atividade foi utilizada ilegalmente;
d) Pelo pagamento das despesas necessárias à estada e ao afastamento dos cidadãos estrangeiros envolvidos;
e) Pelo pagamento de quaisquer despesas decorrentes do envio de verbas decorrentes de créditos laborais para o país ao qual o cidadão estrangeiro tenha regressado voluntária ou coercivamente.”
Os números 10 e 11 do mesmo artigo referem, respectivamente,
“10 – Em caso de não pagamento das quantias em dívida respeitantes a créditos salariais decorrentes de trabalho efetivamente prestado, bem como pelo pagamento das despesas necessárias à estada e ao afastamento dos cidadãos estrangeiros envolvidos, a nota de liquidação efetuada no respetivo processo constitui título executivo, aplicando-se as normas do processo comum de execução para pagamento de quantia certa.
11 – Se o infrator for pessoa coletiva ou equiparada, respondem pelo pagamento da coima, solidariamente com aquela, os respetivos administradores, gerentes ou diretores.”
Os artigos 174.º e 551.º do Código de Trabalho (versão actualizada) refere PRECISAMENTE o mesmo, embora por outras palavras.
Na minha perspectiva, baseada na minha experiência, propostas para a cedência de trabalhadores (estrangeiros ou nacionais) por um valor inferior a 7€/hora devem inspirar a máxima cautela – só uma ETT com um volume de trabalhadores cedidos bastante elevado poderá avançar com propostas ligeiramente inferiores.
Em todo o caso, o produtor agrícola deverá sempre solicitar cópias, pelo menos, em formato digital, do documento de identificação do trabalhador, título de autorização de residência ou comprovativo que fora realizado o pedido de obtenção ou renovação desse documento, o NIF, o NISS, exame médico com aptidão comprovada para o exercício da actividade profissional em causa, comprovativo de comunicação à ACT, contrato de trabalho, apólice de seguro de acidentes de trabalho e, também, folhas de horas trabalhadas (timesheets), recibo de vencimento assinado pelo trabalhador, comprovativo de transferência do montante constante recibo para a conta bancária do trabalhador, comprovativo de pagamento à Segurança Social do montante correspondente às remunerações e Fundo de Compensação dos trabalhadores cedidos, declarações de não dívida à SS e AT sempre actualizadas e ainda, comprovativo que a prestação mensal da apólice de acidentes de trabalho foi efectivamente paga.
A sabedoria popular ensina que o seguro morreu de velho e, voltando ao título deste artigo – o barato sai caro.
O produtor agrícola deve cumprir com as suas obrigações legais mas deve, igualmente, exigir e certificar-se que quem lhe presta serviços agrícolas ou cede trabalhadores para utilização temporária proceda da mesma forma.
Marcelo Araújo – Gerente da Global Workers Lda