Depois da presença em Lisboa do Papa Francisco e de todas as mensagens de humildade e simplicidade, inclusão, alegria, entreajuda, fé nos jovens e na Humanidade, esperança e sobretudo a Paz…mensagens que esperamos tenham tido eco e acolhimento, nos decisores políticos e em todos nós, crentes ou não crentes, eis que regressámos “às nossas vidas” e aos problemas do dia-a-dia, ao “mundo real” que nos tem trazido, nos últimos dias, os dramas das alterações climáticas – julho terá sido o mês mais quente desde que existem registos – das migrações, dos incêndios (ligados de alguma forma ao abandono do território e desordenamento da paisagem, não só em Portugal), inundações, mais deslocados, fome e guerra.
Enquanto muitos desfrutam de merecidas férias, no Atlântico ou no Mediterrâneo, em águas calmas, continuam os conflitos e tensões a nível mundial, em diferentes latitudes, exercícios militares conjuntos, não raras vezes numa provocação ao Ocidente, no mundo bipolar que ganha cada vez mais expressão e realismo. Por isso, com 546 dias na altura em que escrevemos esta Nota, o conflito na Ucrânia é tão importante, tendo entrado numa nova escalada, com ataques sucessivos a Kiev, ou a Moscovo, grande intensidade na Crimeia, a Polónia em alerta a deslocar tropas e mais ajudas à Ucrânia.
Apesar das tentativas de negociação de paz como a que ocorreu, recentemente, na Arábia Saudita, também se multiplicam os esforços para que seja reaberta a rota do Mar Negro, em segurança (Turquia, Nações Unidas), da maior importância para o aprovisionamento global. E esta semana tivemos a boa notícia da Ucrânia, que anunciou a abertura de corredores temporários no Mar Negro para permitir o transporte de cereais, apesar da Rússia ter avisado que os navios poderão ser alvos das suas forças.
Permanece a incerteza e instabilidade, os preços seguem uma tendência de carrossel, enquanto a Rússia vai exportando cereais e tentando alargar a sua “influência” em África.
A sensação que temos é a de que o conflito estará ainda longe do fim, são perturbadores mais ataques no Danúbio e veremos a reação russa às tentativas da Ucrânia e da União Europeia (que pede maior pressão sobre a Rússia), de procurarem alternativas, com a Roménia a assumir um papel ainda mais relevante.
O Presidente Putin está a avaliar a participação pessoal na Cimeira do G20 (a que a Rússia pertence), que vai decorrer em Nova Deli, entre 9 e 10 de setembro, no que deverá ser um encontro seguramente tenso. O representante da política externa da União Europeia já encorajou a sua presença porque a alimentação não pode ser usada como arma de arremesso. Não deixará de ser certamente um teste à coesão e veremos a posição de países como a Índia, a China, o Brasil e a África do Sul, com a Turquia a não abdicar certamente da posição que tem assumido. E assim os países se vão alinhando em função dos seus interesses, cada um a fazer (geo)política e a preparar-se para o pós-guerra.
Já aqui falámos dos impactos do fim do BSGI, das alternativas que a Europa equacionou, das pressões dos países vizinhos sobre o acordo entre a União Europeia e a Ucrânia e o eventual prolongamento das atuais proibições, mas é evidente que o Mar Negro é estratégico a nível mundial, como todos percebemos, não só no curto, mas sobretudo no médio e longo prazo.
De facto, a não renovação do acordo dos cereais preocupa os operadores na Europa e as respetivas Associações. O impacto nas exportações e na entrega de cereais e oleaginosas da Ucrânia já se faz sentir em alguns países. Sem uma ação rápida, a situação pode escalar para uma grande crise, na sequência dos recentes ataques russos ao porto ucraniano do Danúbio Ismail, uma ligação logística crítica ao corredor romeno de cereais. Têm sido solicitadas medidas à Comissão Europeia para mitigar estes impactos.
Com o Corredor do Mar Negro inacessível, espera-se que o volume de tonelagem exportado pelas rotas marítimas diminua drasticamente. Tal poderá conduzir a desafios na distribuição de cereais através das Vias de Solidariedade da UE, podendo resultar num aumento dos preços dos cereais nos mercados locais. A retirada da cobertura de seguros para o comércio na região devido a ameaças militares da Rússia, poderá dissuadir os operadores privados de se envolverem no comércio com a Ucrânia.
O fracasso em manter as atuais exportações da Ucrânia pode ter consequências de maior alcance. Os agricultores ucranianos, em situação de falência, tenderão a reduzir as áreas de cultivo no próximo ano, o que poderá resultar numa perda significativa na oferta global de cereais, com a Rússia a ser cada vez mais dominante nos países dependentes da importação de cereais.
Deste modo, para além da criação de um fundo para cobrir o resseguro de cargas, navios e instalações portuárias, é recomendada a Bruxelas, pela COCERAL e FEFAC, a abertura de “corredores verdes” adicionais para facilitar a passagem de cereais ucranianos através de vários portos localizados em território da UE, como os Estados Bálticos, a Alemanha, os Países Baixos, a Croácia, a Itália e a Eslovénia. Esses corredores agilizariam os procedimentos de controle sanitário, fitossanitário e veterinário no porto de destino, para evitar atrasos na fronteira ucraniana.
Além disso, deve ser prestado apoio financeiro às transportadoras da UE para cobrir os custos adicionais de logística e transporte decorrentes da utilização de rotas mais longas. Recomenda-se ainda que os países da linha da frente (Bulgária, Hungria, Polónia, Roménia e Eslováquia) levantem permanentemente as restrições à importação de trigo, milho, colza e sementes de girassol da Ucrânia a partir de 15 de setembro de 2023.
A FEFAC, que condenou imediatamente as proibições nacionais após a sua introdução inicial em abril de 2023, está em contacto direto com a equipa do EFSCM (gestão de crises) sobre possíveis discussões das partes interessadas relativamente a eventuais medidas de contingência adicionais da UE para garantir o corredor crítico das Vias de Solidariedade através dos portos do Danúbio, na Roménia.
Os preços de mercado têm registado alguma instabilidade e volatilidade, muito longe dos níveis do período homólogo de 2022 e temos notícias positivas ao nível das previsões de áreas record de milho nos EUA, excelentes perspetivas no Brasil – cujo Governo acaba de anunciar um aumento de 52% na quantidade de área disponível para a produção agrícola nos próximos 10 anos – ou seja, um mercado mundial suficientemente abastecido, mas em que os constrangimentos, logísticos ou de outra natureza, não nos devem deixar tranquilos. E as profundas inquietações com o Mar Negro, onde tudo se parece jogar neste momento.
Igualmente preocupante para Portugal é o agravamento da balança comercial.
Em 2022, o défice da balança comercial dos produtos agrícolas e agroalimentares (exceto bebidas) atingiu 5 222,8 milhões de euros em 2022, um agravamento de 1 374,5 milhões de euros face ao ano anterior. Por outro lado, agravou-se o défice do grau de aprovisionamento da carne, sobretudo nos bovinos e suínos, mas manteve-se excedentário no leite e ovos.
É evidente que os cereais têm aqui um papel de relevo nas importações (alimentação humana e animal), com os aumentos de preços e de quantidades, mas é absolutamente urgente inverter esta tendência.
Portugal tem capacidade para aumentar a produção e responder aos desafios do mercado, se forem dadas aos empresários as condições necessárias.
O desafio de sermos mais autónomos, menos dependentes, menos expostos às condicionantes externas, à incerteza e volatilidade, deve ter a segurança alimentar no topo das prioridades.
Para que o nosso Mar seja (um pouco) menos Negro.
Jaime Piçarra
Secretário-Geral da IACA
Fonte: IACA
As infraestruturas portuárias não podem ser forças de bloqueio – Jaime Piçarra