É evidente que vivemos num país livre e democrático, com liberdade de expressão e de opinião, em que todos somos escrutinados e ainda mais os decisores e intervenientes políticos.
No entanto, numa semana dominada pela tomada de posse da nova Assembleia da República e do Governo, de maioria absoluta e de compromisso para toda a legislatura, convenhamos que as primeiras discussões não foram propriamente dignificantes, ou pelo menos à altura daquilo que precisamos, nesta conjuntura bem difícil e complexa, uma guerra sem fim à vista, que, a acrescentar às feridas deixadas pela pandemia, nos vai marcar para os próximos anos.
Ainda se lembram dos objetivos e metas para 2030 ou 2050?
De facto, saber se o Primeiro-Ministro vai abandonar o país em 2024 para se candidatar a um lugar de topo na União Europeia ou se a Assembleia da República deveria escolher determinados deputados para os lugares de vice-Presidente (quantos de nós se recordam dos vices das legislaturas anteriores?) só alimentam os comentadores e treinadores de bancada, o ruído, espaços nos noticiários, criando o substrato perfeito para a demagogia, a vitimização, os radicalismos, e em nada ajudam a resolver os problemas daqueles que os eleitos (ou nomeados) deveriam servir: os cidadãos – desde logo a classe média e os mais desfavorecidos – mas também o universo empresarial, independentemente do setor, sejam micro, pequenas, médias ou grandes empresas, incluindo naturalmente as explorações agrícolas e pecuárias.
São eles, empresas e empresários, que constituem um tecido produtivo que não pode ser hipotecado ou desbaratado, geram emprego, lidam com o risco dos mercados, dos custos dos fatores de produção, com as contradições dos políticos e das Políticas, que produzem riqueza, estabilidade social e tratarão de assegurar que, no final da legislatura, Portugal deverá estar, não na cauda da Europa, mas pelo menos no meio do pelotão, um país de que nos devemos orgulhar, onde vale a pena viver e investir.
Há que olhar com atenção para as novas gerações, que nunca se tinham confrontado com uma inflação de 5,3% (a mais elevada desde 1994), em que o preço dos combustíveis, energia, bens e serviços – desde logo a alimentação – atingiram níveis nunca vistos para quem tem hoje 30-35 anos, começando a questionar se tudo isto é garantido e que olham para o aumento do custo de vida, os juros da casa, do carro, as férias…um conforto que parecia “seguro” e que parece desmoronar-se semana a semana.
Temos ainda a tal classe média que, a cada 4 anos, é cada vez mais reduzida, fustigada pelos impostos, interrogando-se se temos, entre tantos outros, um problema de (baixos) salários ou de (altos) impostos.
De facto, nestes últimos dias, fomos “massacrados” com a análise dos comentários do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, quiçá em nome da estabilidade e dos “avisos à navegação”, a vitimização de alguns partidos políticos por não terem sido eleitos, democraticamente, para os tais lugares na Assembleia, ou numa área que nos diz mais respeito, as interpretações sobre o facto do Ministério da Agricultura e Alimentação surgir em último lugar na lista dos Ministérios e dos Ministros, ter uma leitura política de desvalorização perante os outros setores, qual filho de um Deus menor.
Convém também não esquecer que a Alimentação já era tutelada pelo Ministério da Agricultura – é pena não ter recuperado as florestas – mas esse não deve ser o verdadeiro debate, aquele de que todos precisamos neste momento e com urgência, estejam ou não ligados à agricultura e ao agroalimentar.
Este é o governo, estes são os Ministros, é esta a Assembleia da República.
Dignifiquem quem os elegeu e aqui incluímos os partidos da oposição, trabalhem para que Portugal seja um país melhor em 2026, estejam à altura das circunstâncias e dos desafios que temos pela frente.
Infelizmente, o clima de guerra e as suas consequências, no plano económico e social, irão perdurar muito mais do que o previsto. Alguns analistas insuspeitos, designadamente o Rabobank, referem que em função dos desenvolvimentos do conflito entre a Rússia e a Ucrânia, os preços poderão estar em alta entre 3 e 7 anos, de acordo com os cenários. Na União Europeia, também se admitem diferentes cenários e impactos no curto, médio e longo prazo, com perspetivas mais ou menos pessimistas.
No quadro do setor agroalimentar, os produtores de milho referem que estão “sentados num barril de pólvora”, enquanto o setor agropecuário manifesta um sentimento de abandono, existindo a perceção de que “estamos entregues a nós próprios”.
Todos estamos sentados nesse barril porque a incerteza e a volatilidade conduzem a riscos e preços elevados, sendo difícil manter as empresas viáveis, sem apoios públicos, desde logo do Estado e da União Europeia, como tem acontecido noutros países.
A crise não acabou com a tomada de posse do novo Governo, é preciso continuar a manter o diálogo e as reuniões, reforçar as ajudas, as linhas de crédito, a reserva de crise, conter os aumentos de custos, travar a inflação, reduzir o IVA.
Auscultar as propostas dos parceiros da cadeia alimentar, fazer um debate em torno da importância da Agricultura, da Alimentação, do Agroalimentar.
Qual a estratégia que devemos seguir, as questões da soberania alimentar, as reservas estratégicas e de segurança, revisitar a PAC e as prioridades do PEPAC, a Estratégia “Do Prado ao Prato”, sem cair no erro de colocar em causa os valores europeus da segurança dos alimentos (food e feed safety), as questões do ambiente, da saúde e bem-estar animal, o papel da agricultura e da pecuária na produção de alimentos, sem esquecer a valorização do território e a multifuncionalidade, desde logo a sua relação com os ecossistemas, a eficiência da utilização dos recursos (solo e água), as novas tecnologias (OGM e Novas Técnicas Genómicas), a economia circular e a redução das emissões, a equidade nas regras e exigências às importações de países terceiros.
Nada disso pode e deve ser esquecido, mas, por ora, é necessário olhar com atenção para a produção de alimentos, sem a ilusão ou a tentação de pensarmos que vamos ser autossuficientes em todos os produtos, mas é possível fazer mais e melhor (ambicionar pela autossuficiência em valor), olhar para o território, para as raças e variedades autóctones, para o conjunto das culturas arvenses, cereais, oleaginosas e proteaginosas, o funcionamento da cadeia de abastecimento, numa perspetiva de criação de valor para todos os atores da Fileira.
Um debate sobre o papel da Alimentação na sociedade, que a valorize e lhe dê a importância que merece, sobretudo numa conjuntura em que a opinião pública é mais sensível e está mais recetiva. Que não se pode resumir ao universo agrícola, ao “business as usual”, mas que tem de começar no Parlamento, seja nacional ou a nível europeu porque a agenda é transversal e multidisciplinar, no interesse de todos. Sem demagogias nem ideologias, recusando os falsos vendedores de sonhos e de promessas.
Estamos ainda particularmente preocupados com as tentações de protecionismo de alguns países, designadamente no quadro da União Europeia ou nas origens de que dependemos, e com o comportamento da China (na eventual acumulação de stocks) que poderá fragilizar a Europa.
Não tenhamos ilusões, os preços dos alimentos vão continuar altistas, haverá uma tendência para uma menor globalização, mais acordos bilaterais, e do ponto de vista geoestratégico, nada ficará como antes.
A Alimentação, tal como muitos de nós há muito defendemos, tem uma importância estratégica, só agora reconhecida.
É este, em nossa opinião, o debate necessário e que se exige, com urgência, no Parlamento nacional. Eventualmente numa audição pública, porque, seguramente, é um dos temas que vai marcar toda a legislatura.
Pode ser o primeiro teste à capacidade de intervenção e de reconhecimento do Ministério da Agricultura e Alimentação e às prioridades dos deputados da Nação.
Aqui deixamos o repto…esperamos que seja levado a sério!
Jaime Piçarra
Secretário-Geral da IACA
O artigo foi publicado originalmente em IACA.