“It’s the economy, stupid”
“É a economia, estúpido“, frase da autoria de James Carville, estratega de Bill Clinton, foi utilizada pela primeira vez como piada televisiva nas presidenciais de 1992. Com os EUA a enfrentarem na altura uma profunda recessão, Carville lançou três mensagens-chave: aquela que ficou célebre, dirigida à economia, outra ligada à necessidade de mudanças profundas e a última centrada nos cuidados de saúde. Em tempos de recessão ou de maiores dificuldades, muitos recordam aquela famosa declaração, quase que em jeito de provérbio popular.
Não raras vezes, para não dizer quase sempre, a Economia, porque garante bem-estar, prosperidade e desenvolvimento, liberta meios e recursos para todas as políticas públicas, sobrepõe-se a todas as outras áreas da sociedade ou da governação.
Na nossa opinião a Economia é importante, mas não é a única variável a ter em conta. Há que garantir uma componente social equilibrada, os mais elementares direitos dos cidadãos, como por exemplo, o da alimentação e o da soberania alimentar para os quais contribuem uma adequada gestão do território, das zonas rurais e do interior, o que, consequentemente, resulta em maior criação de riqueza.
Vem isto a propósito dos tempos que vivemos, de enormes dificuldades económicas e sociais, para as famílias, mas também para as empresas. Vivemos com perda de poder de compra, alta inflação, greves sucessivas, instabilidade…a perceção de que temos medidas insuficientes ou tardias para responder a problemas que exigem soluções concretas, numa altura em que também é necessário travar alguma desagregação que se avizinha na União Europeia (UE), numa tensão latente, o substrato ideal para alimentar populismos e demagogia.
As limitações ou restrições anunciadas recentemente por alguns Estados-membros (Polónia, Roménia, Bulgária, Eslováquia e Hungria) às exportações da Ucrânia, não é, seguramente, a resposta mais adequada.
Há cerca de um ano, nos primeiros dias da invasão da Ucrânia pela Rússia, muito se falou da capacidade de defesa dos ucranianos, da duração da Guerra, dos (tristes) exemplos que a Europa tinha dado aquando da ocupação da Crimeia em 2014, do facto de esta mesma Europa funcionar a várias vozes e de acordo com as conveniências e alianças dos diferentes países (sobretudo os do Leste europeu), do perigar dos valores do Ocidente na defesa da democracia e da liberdade, perante regimes autocráticos que, se não forem parados rapidamente, colocam em causa o nosso bem-estar e a nossa soberania.
Mesmo com as fragilidades que se tornaram evidentes, perante um conflito que poderia avançar pelas nossas fronteiras, a UE, tal como a NATO e os EUA, tem sido determinante para travar os avanços russos, favorecendo a resiliência da Ucrânia. Tem sido notória a capacidade de mobilização no que toca à resolução de questões relacionadas com a dependência energética, com as questões logísticas, com o armamento e treino de militares.
No campo específico da alimentação, para além de iniciativas ligadas ao desenvolvimento de infraestruturas, convém recordar o esforço desenvolvido (e bem) pela União Europeia, desde logo com a iniciativa das Vias de Solidariedade e o inegável apoio, desde a primeira hora, no Acordo dos Cereais do Mar Negro (com uma exportação de mais de 23 milhões de toneladas de cereais). O acordo duplo zero nas tarifas, que tem permitido à Ucrânia exportar cereais e produtos agroalimentares sem direitos, foi igualmente relevante no abastecimento e na segurança alimentar à escala mundial, sobretudo aos países mais pobres.
Foi um ano de evidentes mudanças no plano europeu, inimagináveis no início de 2022, e necessárias para o que aí vem.
Por outro lado, a par destas transformações e à medida que nos íamos confrontando com o impacto da guerra na economia – inflação, juros, escassez de matérias-primas, fertilizantes…- fomos, também, percebendo a nossa dependência da Rússia e da Ucrânia, e a importância do Mar Negro. Ficou igualmente claro que o prolongar do conflito iria induzir ao cansaço mediático do “tema” guerra e esse facto, associado às dificuldades económicas que se iriam fazer sentir, poderia colocar em causa a surpreendente robustez da resposta europeia a este desafio. As previsões não deixam de ser sombrias. Aí estão as contestações, políticas e sociais, perante um cenário de profunda incerteza e instabilidade, que decorrem, também, de relações internacionais cada vez mais tensas entre as potências dominantes, China e Estados Unidos. E os BRICS a surgirem, cada vez mais, na geopolítica mundial.
A erosão do bem-estar social é uma realidade, tal como o descontentamento dos agricultores de alguns países do Leste europeu, mais expostos ao impacto das exportações da Ucrânia, e que se queixam, continuamente, dos baixos preços que recebem pelos seus produtos.
Para responder a estas questões, a Comissão Europeia, para além da dotação de 56,3 milhões de € da reserva de crise para os países que foram afetados pelo fluxo de produtos agroalimentares provenientes da Ucrânia, acaba de anunciar um pacote de mais 100 milhões de € para os respetivos agricultores, com a possibilidade de um cofinanciamento a 200%.
No final do mês de março, os Ministros da Agricultura da União Europeia realizaram um debate com a Comissão sobre a situação do mercado, um ano após a invasão russa da Ucrânia, tendo observado pressões inflacionárias sobre a energia, matérias-primas, fertilizantes e fretes, entre outros. Embora os preços parecessem ter estabilizado em certa medida, os altos custos da energia, bem como os preços dos fatores de produção continuam a ser uma preocupação, a Gripe Aviária e a Peste Suína Africana ainda afetam vários Estados-membros. Nesta perspetiva, a Comissão apresentou uma proposta para renovar, por mais um ano, a suspensão dos direitos de importação, quotas e medidas de defesa comercial sobre as exportações ucranianas para a União Europeia. Além disso, foi proposto o apoio de 56,3 milhões de euros já referidos, aos agricultores da Bulgária, Roménia e Polónia que tenham sido afetados negativamente pelas importações de cereais, colza e girassol provenientes da Ucrânia.
Entretanto, a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) publicou um relatório “A Trade Hope: The impact of the Black Sea Grain Initiative“, no qual constam os acordos que têm permitido baixar os custos dos alimentos, estabilizar os mercados globais e mantê-los abertos.
É evidente que o progresso é frágil e permanecem as pressões sobre os preços. Embora os preços das matérias-primas tenham descido do seu máximo histórico no início da guerra, ainda estão elevados comparativamente aos níveis pré-crise. Além disso, as depreciações da moeda impedem muitos países em desenvolvimento de beneficiar das descidas de preços globais.
Entretanto, a Polónia, face às ameaças iniciais de impedir totalmente a entrada de cereais ucranianos no seu território -por estarem a competir isentos de impostos com os de origem polaca – anunciou uma inversão da decisão, afirmando que, pelo menos, não vai impedir o trânsito dos produtos ucranianos pelo seu território, mas há que aguardar as reações dos outros países de leste. Para já, esperemos que estes apoios possam serenar os ânimos e devolver o bom-senso. Há ainda que avaliar as conclusões do Conselho Agrícola de 25 de abril que terá de aprovar o pacote dos 100 milhões de € agora anunciado. Para já, a Comissão Europeia rejeita estas declarações e decisões unilaterais, de todo inaceitáveis, reiterando que a política comercial é da competência exclusiva da UE.
Não podemos pensar que nada disto nos afeta.
Para um país como Portugal, é absolutamente crucial manter a política comercial conjunta e as regras do Mercado Único, para evitar a incerteza do mercado e manter o estatuto da UE como parceiro comercial fiável.
Portugal também beneficia com o reconhecimento do papel da Europa no abastecimento de alimentos à escala global, dando relevância à agricultura e ao agroalimentar europeu para o qual contribuímos enquanto Estado-membro.
Porque, no fim do dia, pese embora os esforços diplomáticos, que devem continuar a existir, a defesa dos valores ocidentais e da integridade territorial da Ucrânia, para manter a coesão europeia … “é a economia, estúpido”.
Jaime Piçarra
Secretário-Geral da IACA
As infraestruturas portuárias não podem ser forças de bloqueio – Jaime Piçarra