O Decreto-Lei que institui o mercado voluntário de carbono (MVC) e estabelece as regras para o seu funcionamento entrou em vigor no passado dia 6 de janeiro de 2024 (D.L. n.º 4/2024). Trata-se de um sistema em que organizações, nomeadamente empresas, podem comprar créditos de carbono como forma de compensar voluntariamente as suas emissões de carbono. Estes créditos, teoricamente, representam a remoção dessas emissões através de projetos desenvolvidos por promotores.
Ao analisar o agora aprovado Decreto-Lei, e comparando também com a proposta preliminar que foi a consulta pública em Abril de 2023, a ZERO constata que, apesar de constar a promoção de projetos noutras áreas, como os ecossistemas costeiros e marinhos, a essência do Decreto-Lei permanece inalterada, ou seja, teremos um mercado voluntário de carbono com foco em projetos de sequestro florestal de carbono, sem garantias credíveis de permanência, e sem grandes esforços no sentido de aumentar a ambição climática.
O mercado voluntário de carbono não deve ser usado para cumprir metas climáticas
À semelhança da proposta de Decreto-Lei submetida a consulta pública, esta versão final assume que o MVC deverá contribuir para o cumprimento dos compromissos nacionais, europeus e internacionais assumidos por Portugal em matéria de mitigação das alterações climáticas. A ZERO considera ser crucial que os objetivos e compromissos climáticos assumidos por Portugal sejam alcançados independentemente da criação do mercado voluntário de carbono, pois só assim será possível salvaguardar efetivamente o princípio da adicionalidade. Isto implica que os projetos de mitigação e sequestro de carbono potenciem a redução e remoção de emissões para além das metas estipuladas. Só assim o MVC português poderá trazer valor acrescentado e ser um mecanismo eficaz na estabilização do clima, não só no contexto da neutralidade climática até 2045, mas na perspetiva mais alargada de antecipar essa data e limitar o aquecimento global a 1,5°C até ao final do século.
Assim, teremos que necessariamente ter o máximo rigor relativamente à qualidade dos créditos e à capacidade de os projetos assegurarem remoções permanentes e seguras o que, infelizmente, ainda não está garantido por este mercado voluntário de carbono nos moldes em que é apresentado.
Além disso, é preciso mais seriedade no que respeita à categorização do MVC como ação climática, prevista não apenas neste Decreto-Lei, mas também no próprio Plano Nacional de Energia e Clima. A ZERO expressa uma vez mais a sua preocupação relativamente aos mercados voluntários de carbono enquanto conceito eficaz para a prossecução de ação climática, pois potencialmente desviam a atenção (e recursos) do foco principal: uma redução efetiva, célere e profunda das emissões. As remoções de CO2 deveriam sempre ser vistas apenas como um último recurso e não como um substituto do objetivo principal, que é a mitigação das emissões na fonte. De notar, ainda, que se manteve a opção de aquisição de créditos de carbono futuros emitidos com base num potencial de redução de emissões de gases de efeito de estufa (GEE) ou de sequestro de carbono previstos para o período de duração dos projetos. Esta opção é particularmente gravosa, já que assenta em remoções possíveis e não efetivas, e ascende aos 20% da totalidade dos créditos, por oposição aos 10% previstos anteriormente.
O perigo e a falácia da compensação de emissões
A ZERO manifesta preocupação com a alteração da definição de compensação de emissões para ser mais abrangente, admitindo-se agora compensações de quaisquer processos, atividades ou eventos. Esta definição mais lata contribui para alargar o espectro de possíveis situações em que as operações e/ou ações se mantêm inalteradas, porque há a possibilidade compensar as emissões associadas. De facto, este decreto-lei continua a associar medidas de sequestro temporário de carbono a políticas de mitigação das alterações climáticas, o que não só não é correto cientificamente, como pode induzir em erro os participantes nestes mercados, levando-os a pensar que podem ser menos ambiciosos nas suas metas de redução de emissões, porque têm a possibilidade de compensar emissões plantando árvores. Este é, sem dúvida, um sinal errado, sobretudo numa altura em que precisamos urgentemente de acelerar o processo de descarbonização e de redução de emissões.
Além disso, o Decreto-Lei falha, novamente, em garantir critérios rigorosos sobre os projetos de sequestro florestal de carbono, nomeadamente uma restrição clara às monoculturas de espécies de crescimento rápido. Na mesma linha, seria importante não só tornar obrigatórias as boas práticas e os serviços de ecossistemas através dos Créditos de Carbono+ (créditos de carbono que, além do sequestro de carbono, incorporem significativos benefícios adicionais ao nível da biodiversidade e do capital natural), mas também estabelecer um requisito claro para que se invista nas espécies autóctones que, de mais a mais, vão ajudar a tornar a nossa floresta mais resiliente e biodiversa.
É também com consternação que a ZERO verifica que, enquanto na versão preliminar ainda existia um artigo que enquadrava a compensação de emissões, ligando-a à necessidade de uma contabilização das emissões das empresas e organizações, por forma a garantir que a compensação através da compra de créditos de carbono fosse feita apenas para emissões residuais e de acordo com um plano de descarbonização conducente à neutralidade de carbónica, nesta versão agora aprovada e publicada esse artigo é omitido, desaparecendo, portanto, um elemento crucial não só para o combate ao greenwashing, mas também para a verdadeira ação climática. Agora não temos nenhuma referência à necessidade de compensar apenas emissões residuais, nem de deixar claro que a compra de créditos de carbono deve estar sujeita a uma contabilização de emissões e a uma política de descarbonização subjacente. Se o objetivo é evitar o greenwashing e efetivar contribuições para a ação climática, é crucial que não se permita que o mercado voluntário de carbono português sirva apenas para que grandes empresas façam uma duvidosa compensação de emissões que deveriam estar a reduzir.
Uma ténue luz ao fundo de um túnel escuro
A ZERO saúda a eliminação do papel inicialmente previsto para o Fundo Ambiental, no sentido de adquirir créditos de carbono no caso de a bolsa de garantia não dispor de créditos suficientes para suprir as emissões de GEE por força de uma reversão – medida, aliás, recomendada pela ZERO. Ao invés, existe a possibilidade da contratualização, embora não obrigatória como deveria, de um seguro ou de contribuição para a bolsa de garantia (ou ambos) e, para mais, é garantido que os valores das eventuais penalizações por reversões intencionais revertem para o Fundo Ambiental.
Ainda assim, a contratação de um seguro deveria ser obrigatória por forma a garantir que as eventuais reversões são contrariadas pela remoção segura e permanente de CO2. Isto é, um seguro obrigatório seria uma forma adicional de qualificar os projetos e de incentivar os promotores a minimizar ao máximo o risco de reversão, já que, à partida, as seguradoras não deverão querer segurar projetos menos fiáveis e com um potencial de reversão maior.
Por outro lado, é também positivo que as propostas de metodologias de carbono sejam sujeitas a um processo de discussão pública, que antecede a sua aprovação e divulgação pela APA. Contudo, será importante saber qual o enquadramento da participação pública, nomeadamente no que diz respeito aos mecanismos a serem adotados, de forma a assegurar a participação plena de todos os interessados. Por outro lado, uma referência mais assertiva e presente aos projetos de sequestro de carbono em ecossistemas costeiros e marinhos é um passo positivo, já que importa maximizar o potencial do oceano e do carbono azul, mas será importante exercer alguma cautela e rigor para garantir que os objetivos de proteção e conservação do oceano não saem prejudicados.
A ZERO acolhe com agrado a proposta de criação de uma comissão técnica de acompanhamento com representantes das entidades relevantes e coordenada pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA), com o objetivo de desenvolver, acompanhar e avaliar as metodologias aplicadas. Esta comissão irá desempenhar um papel fundamental na salvaguarda da total transparência e verificabilidade das metodologias aplicadas, sendo como tal de extrema importância manter a total clareza da sua ação. Importa também garantir que as Organizações Não-Governamentais de Ambiente são ouvidas e chamadas a apoiar ou informar o desenvolvimento de metodologias na mesma medida que as entidades privadas.
Face a este quadro, a ZERO volta a reforçar que a instituição de um mercado voluntário de carbono não pode servir para cumprir objetivos climáticos previamente definidos, os quais terão que ser alcançados independentemente da existência deste mercado, pois a redução de emissões de GEE na fonte não pode deixar de ser o foco da ação climática se quisermos cumprir os objetivos do Acordo de Paris e limitar o aquecimento global ao 1,5º até ao final do século. A ZERO continuará a acompanhar de perto a implementação desta legislação em Portugal e estará particularmente atenta às metodologias adotadas pelos projetos aprovados pelas entidades competentes, prestando particular atenção ao envolvimento das comunidades e ao tipo de investimentos que serão aceites.