[Fonte: Sapo.pt] Chegados à aldeia de Maçussa, na Azambuja, temos encontro marcado com dois empreendedores: o português, sociólogo e também produtor agrícola, Adolfo Henriques, e o nepalês e chefe de cozinha, Tanka Sapkota. Ligação improvável, apenas aparentemente. Une-os trigos em vias de extinção, como o Barbela. Adolfo faz deles farinha. Tanka, produz, em Lisboa, pizas biológicas.
Não mais de 70 quilómetros separam dois mundos. Num extremo, o ponto de partida: Lisboa. Na outra ponta desta narrativa, a aldeia ribatejana de Maçussa, concelho da Azambuja. Sete dezenas de quilómetros que a velocidade deste nosso tempo trata de unir em 45 minutos de condução. Primeiro, a correria da A1 para depois sairmos para os coleantes relevos das proximidades do grande dorso montanhoso da Serra de Montejunto.
Estamos no fim de junho e as searas douram ao sol estival. Temos como destino duas destas searas, aconchegadas numa paisagem de vinha, olival, plantações frutícolas, quintas e povoados alvos. Aguardam-nos sete hectares de terreno estimados e cuidados. Estes dão-nos mote para, aqui, na Maçussa, com não mais de cem habitantes, descobrirmos o que está a juntar um filho desta terra, Adolfo Henriques, ao nepalês Tanka Sapkota, chefe de cozinha há mais de duas décadas radicado no nosso país.
Adolfo e Tanka encontraram em dois cereais antigos, o Trigo Barbela e o Trigo Espelta, hoje espécies quase extintas, o mote para unirem Lisboa a Maçussa.
Numa aldeia com mil habitantes, nos anos de 1960, existiam em pleno funcionamento 226 adegas. Produziam cinco milhões de litros de vinho, mais do que o Alentejo.
Antes de lhes conhecermos os motivos para esta associação, façamos as apresentações. Adolfo acolhe-nos na sua Granja dos Moinhos, iniciativa de valorização dos produtos locais que “cultiva” há décadas. No caso vertente, somos recebidos numa antiga adega de família recuperada. Serve esta como espaço de acolhimento e mostra das dezenas de produtos alimentares em que Adolfo Henriques labora. É, igualmente, um espaço de petiscadas e de memória. É precisamente esta, a memória, que dá mote às palavras do nosso anfitrião, nesta terra para resistentes: “No século XIX este era um território fortemente empenhado no cultivo da vinha. No século XX esta ocupava quase a totalidade dos solos férteis. Numa aldeia com mil habitantes, nos anos de 1960, existiam em pleno funcionamento 226 adegas. Produziam cinco milhões de litros de vinho, mais do que o Alentejo”.
Um desenvolvimento que proporcionou a jovens, filhos de agricultores, como Adolfo, a possibilidade de romperem com um ciclo ancestral de vínculo com a terra de origem. Adolfo pôde estudar fora: “Fui estudar para o Cartaxo. Ia todos os dias de bicicleta”. Mais tarde, completados os estudos em Lisboa, Adolfo regressou à sua Maçussa. Isto há mais de 40 anos. O empreendedor, hoje com 72 anos, lançou-se, então, na recuperação do orgulho local. Fê-lo reinventando o território. Por exemplo, na produção em Portugal do típico queijo Chèvre francês, a partir de leite de cabra. Outro exemplo (há muitos), contado pelo próprio: “Introduzi a rúcula em Portugal a partir de sementes que trouxe dos Estados Unidos”. Adolfo conseguiu, ainda, despertar a atenção dos cozinheiros nacionais para os seus queijos. Há, inclusivamente, um livro que atesta este interesse. Publicado pela editora Assírio e Alvim, com o título “Puro Chèvre”.
Conta-nos Adolfo sobre o ónus de viver num território despovoado: “O silêncio por aqui pesa. Por vezes tenho de ´fugir` daqui para conversar um pouco”. Numa dessas ´fugas`, Adolfo visitou um dos restaurantes de Tanka Sapkota, o Come Prima, casa de comeres italianos, em Lisboa. O chefe de cozinha nepalês apresentava a sua carta baseada nas trufas, delicatessen que o dono da Granja dos Moinhos aprecia.
O silêncio por aqui pesa. Por vezes tenho de ´fugir` daqui para conversar um pouco
É neste contexto que nasce uma aliança entre as farinhas de Adolfo e as pizas de Tanka.
“Há perto de seis anos tinha começado a produção de Trigo Barbela. Lancei à terra as primeiras sementes, facultadas por um amigo, o João Vieira. Na altura plantei meio hectare de Barbela. Um cereal milenar que perdeu a corrida da competitividade para espécies mais rentáveis”. Espécies de trigo menos completas nutricionalmente, mas capazes de responder ao apetite voraz de mercados em crescimento.
A Tanka, homem empenhado no movimento Slow Food eque nasceu em Itália nos anos de 1980, pareceu-lhe interessante a ideia de introduzir nas pizas que produz no restaurante Il Mercato (Pátio Bagatela, em Lisboa), a farinha integral de barbela, produzida por Adolfo Henriques. A área de exploração deste aumentara com os anos, para seis hectares; entretanto nascera um pão, moído em moinho, em mó de pedra, assim como a parceria com uma cerveja artesanal, a Bolina.
“Uma das minhas preocupações é a de procurar produtos sustentáveis para os territórios e que ajudem a dinamizar as economias locais”, sustenta o chefe de cozinha que deixou o seu país natal há perto de três décadas. Tanka viveu na Alemanha, depois em Itália, onde se apaixonou pela cozinha e produtos transalpinos. Finalmente, visitou Portugal há 23 anos. O que seria uma visita curta tornou-se numa estória de vida no nosso país.
Face ao exposto, a produção de Adolfo e a preocupação de Tanka em apoiar produtos à beira da extinção tornou-se numa equação simples. Ou melhor, uma soma entre dois interesses.
Adolfo tinha a matéria-prima, a farinha proveniente de seis hectares de Trigo Barbela. “Uma farinha com pouco glúten e muito rica em vitamina E e em óleos naturais. É uma farinha áspera, mas leve e ´amiga` da digestão”, sustenta Adolfo.
A Tanka, homem empenhado no movimento Slow Food e nascido em Itália nos anos de 1980, pareceu-lhe interessante a ideia de introduzir nas pizas que produz no restaurante Il Mercato, a farinha integral de barbela
Mudamos de cenário. Da antiga adega, para as parcelas de campo cultivadas pelo empreender da Maçussa. A ceifa avança a meio campo. Do solo despontam as pontas ásperas das espigas cortadas rentes. Restam perto de três hectares de trigo por ceifar, num ano que oferecerá uma dezena de toneladas de colheita. As espigas dançam ao vento quente. Adolfo e Tanka enveredam caminho seara dentro. Há que explicar o porquê de plantar este trigo difícil, num terreno, este ano, sequioso: “Choveu pouco quando devia de ter chovido”, salienta o dono da Granja dos Moinhos, que mima a terra, enriquecendo-a com fava.
“As espigas são mais altas que as do trigo explorado comercialmente. Há vantagens nisto pois o Trigo Barbela, crescendo mais rapidamente [vemo-lo à altura do peito], do que as infestantes, faz-lhes sombra, e não encontram oportunidade para se desenvolverem, o que evita ter de aplicar herbicidas. As raízes são verticais, indo buscar nutrientes fundo, na terra, ao contrário da maioria dos trigos, com raízes horizontais, pedindo mais adubos”, sustenta Adolfo que nos deixa um alerta: “As pessoas não têm noção, em Portugal só temos reservas de trigo para dez dias”.
Um mundo, o das sementes, para o qual Adolfo olha com apreensão: “Com a implementação do novo registo das sementes, teremos de adquirir as espécies registadas. É um processo oneroso, acessível às multinacionais, mas complicado para os pequenos produtores”, sublinha o empreendedor, acrescentando: “uma advogada indiana, ligada ao movimento slow food, tem neste momento 50 processos contra a Monsanto [multinacional da agricultura e biotecnologia] por causa da questão dos registos de espécies de arroz cultivadas na Índia e muito importantes para economias locais”.
Adolfo e Tanka convidam-nos a esventrar o âmago de uma espiga para encontrarmos os bagos deste trigo de “barba” [para proteção face aos pássaros], também conhecido como “morto-vivo”. Por várias vezes foi dado como quase extinto no nosso país, embora ainda resistente em pequenas produções transmontanas. Uma cultura que, se estima, foi introduzida em território nacional por volta do século VIII, pelos árabes. Um trigo com origem no Crescente Fértil, atual Egipto. Ao contrário do primo Trigo de Espelta, de origem Etrusca (Península Itálica), também produzido por Adolfo, num hectare de terreno, mas que não tem história de cultivo no nosso país.
Com a implementação do novo registo das sementes, teremos de adquirir as espécies registadas. É um processo oneroso, acessível às multinacionais, mas complicado para os pequenos produtores.
Seguimos o conselho do par de anfitriões. Com os dedos esfarelamos uma espiga. Os bagos, em menor quantidade do que numa espiga modificada, soltam-se do seu invólucro. Levamo-los à boca. A trincadela devolve-nos um remoto sabor a pão, ou se quisermos, a uma das bases de piza de Tanka.
Passamos, agora, ao outro extremo desta nossa estória. Estamos em Lisboa, no espaço Pátio Bagatela. Dentro de portas, no restaurante e também mercearia de produtos italianos, Il Mercato (inaugurado em 2017), damos voz ao chefe de cozinha Tanka Sapkota. O trigo de Adolfo aqui está transformado em farinha rústica. Na próxima hora, o chefe de cozinha nepalês vai deixar a sua máquina de amassar, que simula o movimento dos braços humanos, a Impastatrici a bracci tuffanti, a laborar. Dentro da cuba, misturam-se a água, esta a uma temperatura entre os 17 e os 18ºC [no fim do processo não pode superar os 21 ºC], o azeite, o sal e, naturalmente, a farinha de cereais antigos. Coração de uma boa massa, o fermento, ou massa-mãe. No caso vertente, Tanka usa um “isco” de várias gerações. Ou seja, uma cultura que permitirá à massa crescer, utilizada sucessivamente por diferentes chefes de cozinha. Na prática, diariamente é retirada uma pequena quantidade à massa-mãe que, por seu turno, recebe um pouco da nova massa que se reproduzirá. Caso para que se diga que há vida dentro destas massas.
No que respeita à farinha com que alimenta as suas pizas, conta-nos Sapkota: “Utilizo uma mistura com 70 % de Barbela e 30 % de farinha ´Preta-Amarela´, também portuguesa, integral e biológica”.
Nos próximos 60 minutos os braços mecânicos não se cansarão, pacientes, amassando sem quebrar a cadeia de glúten da massa. Esta conhecerá, mais tarde, os 300 ºC do forno a lenha, instalado na cozinha do Il Mercato. Terá, antes de ser estendida com as pontas dos dedos, convocados a encontrar o característico formato redondo da piza napolitana. Há, também, que assegurar um bordo ligeiramente alto.
Não esperaremos mais do que um minuto e meio para que a bocarra escaldante do forno, nos devolva um elenco de pizas preparadas com tomate, mozzarella (chega três vezes por semana, de avião, desde Itália), gorgonzola, cogumelos, azeitonas, trufas negras (na época destas), mortadela, entre outros produtos biológicos e DOP (Denominação de Origem Protegida). Pizas que no Il Mercato, orçam entre os 10,95 euros e os 19,95 euros.
Para lá da carta, onde vamos encontrar mais de uma dezena de tipos de massa fresca, uma referência à feição de mercado desta casa de comeres transalpinos, com venda de produtos italianos difíceis de encontrar fora daquele país, nomeadamente a charcutaria e queijos. Parmesão Reggiano de Vaca Rossa, Parmesão Reggiano da montanha, ou Mozzarella de búfala artesanal, estão entre os acepipes comercializados. Acresce uma bem nutrida garrafeira de vinhos italianos.