O secretário-geral da ONU alertou hoje que quatro em cada cinco das pessoas mais famintas do mundo estão em Gaza, onde “ninguém tem o que comer”, e advertiu que provocar deliberadamente fome a civis pode constituir crime de guerra.
Num debate de alto nível do Conselho de Segurança da ONU para abordar “o impacto das alterações climáticas e da insegurança alimentar na manutenção da paz e segurança internacionais”, António Guterres advogou que “onde as guerras acontecem, a fome reina”, seja devido ao deslocamento de pessoas, à destruição da agricultura ou aos danos às infraestruturas, seja devido às políticas deliberadas de negação.
De acordo com o líder da ONU, o clima e os conflitos foram as principais causas da insegurança alimentar aguda para quase 174 milhões de pessoas em 2022.
“Estou consternado em dizer que o nosso mundo hoje está repleto de exemplos da relação devastadora entre fome e conflito”, disse, dando Gaza como um dos exemplos.
“Em Gaza, ninguém tem o que comer. Das 700 mil pessoas mais famintas do mundo, quatro em cada cinco habitam aquela pequena faixa de terra”, frisou.
Na Síria, observou o secretário-geral, quase 13 milhões de pessoas vão para a cama com fome depois de uma década de guerra e de um terrível terramoto; e, em Mianmar, o conflito e a instabilidade política inverteram o progresso no sentido de acabar com a fome.
Guterres alertou para o risco de um “ressurgimento da inflação alimentar, à medida que as secas minam o Canal do Panamá e a violência atinge o Mar Vermelho, desorganizando as cadeias de abastecimento”.
“Em Portugal temos um ditado: ‘Numa casa sem pão, todos discutem e ninguém tem razão’. (…) Sem ação, a situação irá deteriorar-se. Os conflitos estão a multiplicar-se. A crise climática está prestes a entrar em espiral, à medida que as emissões continuam a aumentar. E a insegurança alimentar aguda tem aumentado ano após ano”, declarou, perante o corpo diplomático.
O Programa Alimentar Mundial estima que mais de 330 milhões de pessoas foram afetadas pela insegurança alimentar em 2023 e alertou para uma deterioração aguda em dezoito “pontos críticos de fome” no início deste ano.
Para evitar ameaças crescentes à paz e à segurança internacionais e quebrar as ligações mortais entre conflito, clima e insegurança alimentar, Guterres apelou, em primeiro lugar, a que todas as partes em todos os conflitos respeitem o direito humanitário internacional.
“A Resolução 2417 do Conselho de Segurança sobre a proteção de civis em conflitos armados é clara: os bens essenciais à sobrevivência dos civis devem ser protegidos. A fome de civis pode constituir um crime de guerra. E os trabalhadores humanitários devem ter acesso irrestrito aos civis necessitados”, frisou, admitindo que “muitas vezes, esse não é o caso”.
Em segundo lugar, o ex-primeiro-ministro português defendeu o financiamento total das operações humanitárias para evitar que desastres e conflitos alimentem a fome, sublinhando que, no ano passado, as operações humanitárias foram financiadas em menos de 40%.
A criação de condições para resolver conflitos e preservar a paz “dentro dos países e entre países”, controlar a crise climática para limitar o aumento da temperatura global a 1,5 graus Celsius e tomar medidas em matéria de finanças foram outras medidas apontadas pelo líder da ONU.
“É angustiante ver os Governos gastarem pesadamente em armas, ao mesmo tempo que privam os orçamentos para a segurança alimentar, a ação climática e o desenvolvimento sustentável mais amplo”, lamentou.
“A mensagem é clara: podemos quebrar o nexo mortal da fome, do caos climático e do conflito, e acabar com a ameaça que representam para a paz e a segurança internacionais. Vamos agir para o fazer e construir um futuro habitável e sustentável, livre da fome e livre do flagelo da guerra”, concluiu António Guterres.
O debate de hoje foi convocado pela Guiana – país que preside este mês o Conselho de Segurança da ONU -, com o objetivo de promover uma maior compreensão, respostas mais coordenadas e abordagens proativas para abordar as ligações entre a insegurança alimentar e as alterações climáticas num contexto de paz e segurança.
O debate, que foi presidido pelo chefe de Estado da Guiana, Mohamed Irfaan Ali, contou com a inscrição de mais de 80 Estados-Membros, incluindo Portugal.
O encontro marcou também a primeira vez que um representante da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC) fez uma apresentação formal sobre alterações climáticas, paz e segurança perante o Conselho de Segurança da ONU.
O secretário executivo da UNFCCC, Simon Stiell, aproveitou a ocasião para alertar que quanto menos for feito para combater as alterações climáticas, mais conflitos o mundo terá.
“Há apenas alguns anos, o mundo acreditava que poderíamos erradicar a fome. Hoje, uma em cada dez pessoas no planeta já sofre de fome crónica. Esse número é inaceitável. Se as alterações climáticas acelerarem, a situação irá piorar”, alertou.