Um dia destes fiz um post simples, básico, diria eu:
“Informação gratuita:
Mais de metade da área de povoamento florestal de Portugal é composta por eucaliptal e pinhal.
E já é mais ou menos assim pelo menos desde os anos 30 do século passado.”.
O que está aqui escrito é conhecido e mais que conhecido, o “mais ou menos” prende-se com pequenas variações de percentagem que pontualmente podem diminuir a percentagem destas duas espécies para quarenta e muitos por cento do total dos povoamentos, e com as dificuldades das estimativas de área de povoamento florestal na primeira metade do século XX, antes da fotografia aérea.
Em traços largos, é um facto que a soma de pinheiro e eucalipto representa, há um século, sensivelmente metade da área dos povoamentos florestais em Portugal.
Note-se que na outra metade os montados, que é um tipo de povoamento de árvores dispersas, têm um peso enorme, podendo, pontualmente, ter ultrapassado a área de pinheiro.
Estranhamente para mim, este post, uma mera informação corrente, conhecida e largamente inútil, por si só, motivou uma série de comentários heterogéneos, uns porque eu não citava as fontes da informação, outros porque eu estava a branquear a expansão do eucalipto, outros porque era uma provocação inaceitável e, num desses comentários, aparece o gráfico abaixo que, de acordo com o autor do comentário, desmentia cabalmente o que eu tinha escrito.
Independentemente do gráfico confirmar o que eu tinha escrito, a verdade é que tem muita outra informação, para quem se disponha a interpretar o gráfico com base em conhecimento existente.
Comecemos por fazer notar o tracejado antes de 1900 e realçar que até 1956 (e mesmo assim, embora a estimativa de 1956 já seja uma estimativa moderna, do Serviço de Reconhecimento e Ordenamento Agrário), as estimativas são relativamente pouco rigorosas, é o melhor que se arranja, a traço grosso estarão certas, mas não se lhes pode pedir um rigor que elas não poderiam ter na época.
Um primeiro mito, sobre a tragédia do desaparecimento do montado, fica um bocadinho chamuscado quando se verifica que, mesmo com alguma perda nas últimas décadas, temos uns milhares de hectares a mais que os que havia no princípio do século (aí pelos menos uns trezentos mil hectares a mais, um aumento de mais de 50%).
Outro mito que sai um bocadinho combalido é o de que a campanha do trigo ter destruído milhares de hectares de montado, sendo evidente que há um aumento acentuado do montado que é contemporâneo da campanha do trigo do Estado Novo (e, se se souber que a verdadeira campanha de arroteamento de terras para cereal não é a campanha do trigo do Estado Novo, em rigor, da Ditadura Nacional, perfilhada pelo Estado Novo, mas sim a Lei da Fome, de Elvino de Brito, que é de 1899, com mais segurança se aceita que a expansão da produção de cereal é favorável ao montado).
Seria preciso ter mais alguma informação para identificar as causas do relativo declínio, apesar de alguma estabilidade, do montado a partir da década de sessenta (a primeira legislação de protecção do sobreiro é de meados dos anos 50, mas é excessivo pretender que influenciou esta dinâmica), para saber se esse declínio é em todo o montado, ou sobretudo no montado de azinheira, que é a minha hipótese, relacionada com a peste suína africana e a perda de valor económico do montado de azinho provocada pela proibição do porco de montanheira.
Consistente com esta diminuição (em qualquer caso, verificável nos dados da evolução dos povoamentos de azinheira, que perdeu entre 100 mil a 200 mil hectares desde meados dos anos 50 até hoje, sendo responsável por mais de 50% da perda do montado que se verifica no gráfico), vê-se o primeiro aumento da área de eucalipto, ainda muito marginal. Esta correlação tem evidências contingentes na gestão de algumas grandes propriedades do Alentejo e Beira interior, cujos proprietários resolveram reconvertar o azinhal para eucalipto, por falta de alternativa quando o porco de montanheira é proibido, de maneira geral com resultados muito pobres porque as exigências ecológicas do eucalipto não coincidem com o óptimo da azinheira, do que resultaram eucaliptais de baixíssimas produtividades.
O que é claramente visível no gráfico é que há uma subida acentuada da área de pinhal até aos anos 30 do século XX, mais coisa menos coisa, e depois uma subida continuada, mas relativamente suave, até aos anos 70 do século XX, seguido de uma queda brusca (desde os anos 70 do século XX até hoje, o pinhal reduziu a sua área de distribuição para mais ou menos metade da que existia no pico da sua expansão).
O abandono rural tinha começado em meados dos anos 50, o que significa uma progressiva diminuição da intensidade de gestão, em especial das terras mais marginais, e em meados dos anos 70. Por essa razão, vinte anos depois, o padrão de fogo tinha-se alterado profundamente, pondo em causa a viabilidade de muita área de pinhal e aumentando o risco de investimento em pinhal. Esta circunstância é potenciada pela perda de valor relativo dos produtos do pinhal, incluindo, posteriormente, uma queda brusca do valor da resina, com a entrada da China, e depois do Brasil, no mercado das resinas naturais.
É dessa altura a expansão rápida do eucalipto, substituindo pinhal – entre outras razões, o eucaliptal de produção está muito mais adaptado ao ciclo de fogo actual – expansão essa que é potenciada por uma política de Estado, materializada por empresas públicas de celulose, nos anos 80 do século XX, a época de expansão mais rápida da área de eucalipto (bem visível no gráfico).
O mito dos eucaliptais ou pinhais que substituem carvalhais também fica reduzido a cinzas com estes dados, tal como o mito da importância da composição florestal no padrão de fogo, visto que pelo menos desde os anos trinta do século XX que a composição florestal é basicamente a mesma (com a troca de pinhal por eucaliptal em metade da área de pinhal dos anos 70, o que do ponto de vista do fogo é irrelevante), e o padrão de fogo evoluiu da forma que conhecemos.
E, já agora, é com o padrão de fogo actual, a partir dos anos 80 do século XX, que se verifica uma evidente expansão da área de carvalhais, soutos e etc., desfazendo o mito de que as nossas matas naturais (que são uma percentagem ínfima dos povoamentos florestais em Portugal), têm estado a ser destruídos pelos incêndios.
Não porque os carvalhais beneficiem dos incêndios, mas sim porque as forças modeladoras da paisagem, em especial a gestão da vegetação miúda (pastagens, arbustos, e coisas que tais) que alimenta os fogos são as mesmas forças modeladoras que alimentam a expansão dos sistemas naturais: menos gestão, mais vegetação natural, fogos mais intensos, extensos e contínuos.
Apesar de tudo isto, há uns académicos e decisores na administração pública profundamente empenhados em torrar dinheiro dos contribuintes numa transformação da paisagem que, dizem eles, vai resolver o problema da gestão do fogo, através da alteração da composição dos povoamentos florestais.
E pronto, como um simples gráfico, com um bocadinho mais de informação, é tão útil para desfazer mitos que nos levam a adoptar políticas ineficientes.
Ou melhor, seria, se não houvesse tanta gente que jamais deixará que os factos influenciem as suas ideias.
O artigo foi publicado originalmente em Corta-fitas.