Num artigo recentemente publicado pela Unidade de Vida Selvagem da Universidade de Aveiro, em parceria com a Rewilding Portugal e a Zoological (Lino et al., 2023, ver aqui), que inclui dados recolhidos no âmbito do projeto LIFE WolFlux, destaca o impacto da predação por cães errantes no efetivo pecuário e revela uma maior representatividade de ungulados silvestres na dieta do lobo-ibérico a sul do rio Douro .
Cães errantes, um problema crescente em Portugal e na Europa
O crescente (e não controlado) aumento de cães errantes, principalmente em regiões rurais, por toda a Europa, tem vindo a criar novos desafios que precisam de uma resposta rápida, assertiva e baseada em dados concretos, como os que este artigo apresenta.
Em relação à predação a gado doméstico, este tipo de relatos são comuns por toda a Europa, nomeadamente na Suécia, na Estónia, na Polónia, em Itália e até na nossa vizinha Espanha. Este é apenas um dos grandes problemas que podem advir desta maior presença de cães errantes na paisagem e em terras de lobo, já que existem outros problemas também já identificados: predação sobre espécies silvestres, muitas vezes em competição direta com o lobo (ex. corço, javali e lebre); disseminação de doenças entre carnívoros; e possibilidade de hibridização com lobo.
Em Portugal, a abundância do lobo-ibérico (Canis lupus signatus) diminuiu drasticamente durante o século XX, principalmente devido à perseguição humana e perda de habitat. Atualmente, ocorre apenas em 20% daquela que seria a sua área de distribuição original, e embora seja uma espécie protegida por lei em Portugal desde o ano de 1988, continua a estar listada como “Em perigo” no Livro Vermelho dos Mamíferos de Portugal Continental
A título de exemplo, em 2016, os centros oficiais de recolha de animais recuperaram mais de 4000 cães apenas na região centro de Portugal. Reconhece-se, no entanto, que a dimensão do número de cães errantespermanece desconhecida.. Muitos destes animais são cães de caça e de companhia abandonados Outros são cães com dono que devido ao seu papel nas atividades humanas (e.x. cães de gado), são autorizados a vaguear livremente. No entanto, muitos outros cães com dono e sem uma função específica que o justifique, usufruem também desta liberdade de movimentos o que potencia ainda mais estes casos (Espírito-Santo 2007). Apesar do elevado número de cães,em áreas de presença de lobo, não existiam dados quantitativos publicados sobre os seus padrões de consumo de presas no nosso país.
O artigo publicado recentemente pela Unidade de Vida Selvagem da Universidade de Aveiro (“Dog in sheep’s clothing: livestock depredation by free‑ranging dogs may pose new challenges to wolf conservation”, Lino et al., 2023) avalia e compara a composição da dieta do lobo e de cães errantes na área de distribuição do lobo a sul do rio Douro, a subpopulação em maior risco de extinção de Portugal.
Resultados, conclusões e passos para o futuro
O estudo engloba amostras de toda a extensão da área de distribuição do lobo a sul do rio Douro, nomeadamente duas Zonas Especiais de Conservação (ZEC) definidas no Plano Sectorial da Rede Natura 2000, nomeadamente “Serras da Freita e Arada” (PTCON0047) e “Montemuro” (PTCON00025). Esta região montanhosa, com altitudes até 1381m, abrange a área de atuação de três alcateias de lobo confirmadas (Arada, Cinfães e Montemuro). Para a sua realização, foram analisados 107 excrementos de lobo e 95 excrementos de cão confirmados geneticamente. Adicionalmente, foram contemplado 40 ataques a gado com confirmação genética das espécies que se alimentaram das carcaças dos animais predados.
Esta análise de excrementos destacou as cabras como a presa mais consumida pelo cão em todas as regiões analisadas, seguindo-se os lagomorfos (coelhos e lebres), os pequenos mamíferos e o javali. Os lobos alimentam-se principalmente de cabras e javalis no oeste, enquanto na região central se alimentam principalmente de aves, sendo provável que este elevado consumo advenha de carcaças de animais que são descartadas pelas explorações na zona. A sobreposição de dietas entre ambos os canídeos foi muito elevada, demostrando um elevado potencial para competição por recursos.
Visão geral da composição da dieta do cão e do lobo na área de estudo, com número de fezes analisadas (Lino et al., 2023)
Distribuição das espécies de gado atacadas na área de estudo, com número de ataques por região (Lino et al., 2023)
Além disso, verificou-se que os cães foram os únicos predadores detetados na maioria dos ataques (62%), um dado surpreendente que revela o papel altamente influente que estes poderão ter no agudizar de conflitos entre comunidades locais e o lobo-ibérico, uma vez que o lobo é muitas vezes presumido como autor dos ataques por defeito. Resultados que realçam portanto o papel dos cães como possíveis predadores de gado e, possivelmente, também de espécies silvestres. Para além de práticas de gestão adequadas, salientamos a necessidade de uma aplicação mais rigorosa da legislação sobre a posse de cães e de uma gestão eficaz da população errante para reduzir os conflitos entre humanos e lobos.
Localização de todos os ataques amostrados (N=51, círculos), e fezes de cão (N=95, triângulos azuis) e de lobo (N=107, triângulos cor de laranja) analisadas, com delimitação das três regiões de estudo e dos sítios Natura 2000
Avanços no caminho da renaturalização e a prevenção de danos
Este estudo também permitiu concluir que composição da dieta do lobo é mais diversificada do que a descrita anteriormente para a região Oeste do Sul do Douro, com o consumo de javali e corço a representar uma maior proporção da dieta da espécie, quando comparada com avaliações anteriores. Isto supõe um importante resultado de sucesso para a conservação, pois é fruto não só da expansão natural do javali e o corço, mas também de programas de reintrodução de corço (Torres et al. 2018) e do aumento das medidas de prevenção de prejuízos apoiadas por vários programas e projetos de conservação do lobo, incluindo o LIFE WolFlux. Um excente resultado, já que, durante décadas, as únicas presas que o lobo tinha a sul do Douro eram gado, pois a suas presas naturais, selvagens tinham sido extintas.
A Rewilding Portugal entregou, até à data da redação deste artigo, 96 cães de de gado e 34 vedações para prevenir e reduzir os ataques de lobo em toda a área de distribuição da espécie a sul do rio Douro. Também trabalha para restaurar e proteger o habitat das presas do lobo em conjunto com os atores locais, estando atualmente a realizar trabalhos de restauro de florestas nativas e pastagens em 50 hectares, criação de 20 novos pontos de água para a fauna selvagem e trabalhando em colaboração com associações de caça para implementar Planos Globais de Gestão de fauna sustentáveis e zonas de refúgio de caça em mais de 700 hectares.
Fonte: Rewilding Portugal