Mandaram-me esta fotografia de 1958 do Curral das Freiras, na Madeira e isso acabou por ser a motivação final para escrever um post que há vários dias punha a hipótese de escrever.
Quando escrevi este post, um botânico, dos melhores que o país tem, disse-me que não via Darwin em lado nenhum do post.
Eu acho bastante óbvia a referência a Darwin, mas sei que o óbvio é uma coisa muito subjectiva, de maneira que me vou servir deste artigo do Observador para voltar ao assunto.
No essencial, Miguel Sequeira, que conhece a flora da Madeira como pouca gente, traça um cenário catastrófico resultante do fogo deste ano.
Eu não conheço a Madeira, mas tenho umas luzes sobre evolução da paisagem e é a partir dessa ignorância e dessas luzes que faço este post.
Qual é o meu problema de base em relação ao discurso catastrófico do género “é muito provável que aquela pequena ocorrência tenha desaparecido” (paralelo ao discurso da extinção da freira da madeira que, afinal, parece não ter sido afectada pelo fogo)?
É que o desaparecimento de uma espécie, ou mesmo de uma população relevante, ou resulta de um processo contínuo de alteração das condições que permitem a sua sobrevivência, ou de fenómenos excepcionais, como a descoberta e colonização da ilha, por exemplo.
Para que se admita que este fogo tem efeitos excepcionais sobre o património natural, é preciso admitir, em primeiro lugar, a excepcionalidade deste incêndio, de outra forma, se o fogo não for absolutamente excepcional, é muito pouco provável que gere efeitos negativos excepcionais, como extinguir espécies ou populações relevantes.
E ressalvo já que escrever o parágrafo anterior não é desvalorizar os efeitos do fogo ou dizer que este incêndio não possa ter tido efeitos negativos que era melhor que fossem evitados, é apenas dizer que efeitos excepcionais resultam de factos excepcionais, em princípio.
Miguel Sequeira, pelo contrário, dá indicações de que nada de excepcional se passou com este fogo: “revoltado com a facilidade com que os incêndios florestais continuam a acontecer e a ameaçar a vida natural, por razões quase sempre atribuídas à negligência ou ao crime”.
Comecemos pelos factos conhecidos: terão ardido 5 116 hectares numa semana (uma área semelhante ardeu em três horas no pinhal de Leiria, para se ter um termo de comparação sobre a intensidade e rapidez de progressão do fogo), dos quais, 139 hectares terão sido de laurissilva.
Factualmente, portanto, a ideia de que era a laurissilva que estava a arder tem muito pouca sustentabilidade nos dados. Isso não é desvalorizar os 139 hectares de laurissilva que teria sido melhor que não ardessem (eu não discuto isso porque não sei o suficiente sobre esses sistemas para discutir se é ou não um problema de conservação relevante arder parte da laurissilva), é fixar os dados, para depois poder discutir interpretações.
Consciente do desfasamento entre o discurso conservacionista sobre o fogo na Madeira, completamente focado na Laurissilva, e a realidade de que afinal a esmagadora maioria da área queimada não é laurissilva, Miguel Sequeira reorienta a informação para a riqueza patrimonial dos matos, no que tem razão, mas retira da discussão quase toda a argumentação a favor da supressão do fogo – a ideia de que a laurissilva convive mal com o fogo – porque esses matos têm pelo menos 500 anos de convivência com o fogo e o gado (Darwin está aqui, na integração da evolução de áreas que há 500 anos convivem com fogo e gado que impede a argumentação usada de que a laurissilva evoluiu quase sem fogo e herbivoria).
“Temos mais de 100 endemismos na ilha da Madeira”, lembra o botânico, explicando que a “maior parte dos endemismos da Madeira está em risco crítico de extinção”, mas sem explicar por que razão se admite que o fogo seja um dos factores que contribui para esse risco crítico de extinção quando está presente há pelo menos 500 anos (juntamente com a herbivoria).
Uma coisa é dizer que esses matos são fases iniciais de evolução da vegetação que conduzirá à laurissilva, se eliminarmos o fogo e herbivoria do sistema, assumindo que o valor de conservação está na laurissilva (e não discuto aqui o facto das tentativas de supressão do fogo, de maneira geral, se traduzirem por alterações do padrão de fogo, de frequente, em mosaico e pouco intenso para menos frequente, mais contínuo e mais intenso), outra coisa é assumir que o valor de conservação afinal está também nos matos, pressupondo que o fogo prejudica as espécies que há 500 anos convivem com fogo e herbivoria.
Outra ressalva, não estou a discutir a questão das invasoras, que é uma questão bastante mais consensual, embora de resolução difícil, sobretudo partindo do pressuposto de que não existe, que eu saiba, nenhum exemplo de sucesso de políticas de supressão do fogo em áreas extensas.
“De acordo com o botânico da Universidade da Madeira, há ainda outro problema associado a este incêndio: “As plantas das ilhas não estão adaptadas ao fogo. O fogo promove as espécies exóticas. Numa ilha, o fogo só promove as espécies que introduzimos e que são adaptadas ao fogo.””.
Esta argumentação é emocionalmente muito forte, tem uma base técnica razoável (as plantas das ilhas não estão adaptadas ao fogo, matéria que não sei discutir), mas tem um problema: há 500 anos que a ilha foi colonizada com fogo e gado, e as espécies menos aptas a essas novas condições extinguiram-se, com certeza, logo que essas novas condições começaram a operar.
As espécies que hoje subsistem, convivem há 500 anos com as novas condições, não havendo nenhuma razão para supor que hoje existe mais fogo e gado que em meados do século XX (ver fotografia inicial do post).
Pode haver um padrão diferente de fogo, como acontece no continente, porque o abandono permite uma maior acumulação de combustível e isso ter um efeito mais negativo sobre a conservação dessas espécies mas, se assim for, a gestão de combustíveis é a questão chave que, a não ser feita, acentua essas alterações do padrão de fogo.
A ideia de que as políticas de supressão do fogo impedem o fogo é errada, as políticas de supressão do fogo alteram o padrão de fogo no termos que descrevi acima, acentuando os riscos para as espécies que poderiam beneficiar com a supressão do fogo.
Bingo! Aqui está o corolário de toda a argumentação fortemente emocional, e cega em relação à ecologia do fogo, que tem dominado os meios da conservação quando falam do fogo na Madeira:
““É um círculo vicioso que começa com um fósforo”, acrescenta, lembrando como a maioria dos fogos têm origem humana — seja por mão criminosa, seja por negligência. No caso deste incêndio da Madeira, já está confirmado que a origem do incêndio foi o lançamento de um foguete e o Ministério Público até já constituiu um arguido na investigação”.
Camaradas, tenho uma novidade para vos dar, o caminho da supressão do fogo sem aumento do conhecimento relacionado com a ecologia do fogo, é um caminho velho em todo o mundo, sempre, sempre, sempre com o mesmo resultado: fogos futuros mais destrutivos.
Darwin anda por aí.
O artigo foi publicado originalmente em Corta-fitas.