O manto verde que cobre a Serra da Gorongosa e redondezas está rasgado em vários pontos por manchas cinza que mostram as feridas causadas pela desflorestação.
A população tem cortado mais de 100 hectares de floresta tropical por ano e, até há pouco tempo, “não aceitava replantar árvores, porque diziam que não tinham nenhum ganho com isso”, explica à Lusa Sional Moiane, supervisor do projeto de plantação de café.
Um total de 5.989 hectares de floresta tropical desapareceu em 44 anos na Serra da Gorongosa porque a terra é necessária para cultivar alimentos e produtos que se vendam no mercado e as árvores servem para fazer carvão, o principal e mais acessível combustível por estas bandas.
A viagem até ao cimo da montanha leva mais de duas horas num caminho só para todo-o-terreno que, de vez em quando, cruza comunidades a queimar e a derrubar floresta preciosa.
É a lei da subsistência.
As raparigas casam cedo, deixam a escola e têm em média cinco filhos: muitas bocas para alimentar em lugares sem eletricidade, água ou saneamento, sem emprego e sempre atormentados por guerras até 2016.
O Parque Nacional da Gorongosa quer inverter todo este cenário com a cultura de café, a mesma planta com a qual quer acautelar um futuro de clima incerto e guardar as águas das chuvas na serra, em vez de escorrerem como força de erosão pela terra nua.
A experiência ambiental e social de plantar café começou há nove anos.
Aos olhos de Sional Moiane, supervisor do projeto, o impacto das receitas do café começa a ser tão visível como as plantações que já estão à vista de qualquer pessoa que suba a montanha.
Fala de famílias que constroem casas mais resistentes que o barro e caniço, que compram material escolar e que levam mais crianças para as aulas.
A área plantada pelo parque e nas hortas de 800 famílias supera pela primeira vez 240 hectares e prevê-se que continue a crescer porque há cada vez mais interessados em replicar o sucesso do vizinho – tudo começou em 2013 com um viveiro de 66 mil mudas.
“Estamos a terminar a colheita”, diz Sional junto aos tabuleiros de secagem, na fábrica de Mapombué, no sopé da montanha.
Para esta temporada prevê-se um novo recorde com 34 toneladas de café seco, descascado e pronto a torrar, quase cinco vezes mais que na primeira, em 2015.
Outro marco importante é que a maior parte do café deste ano (67%) vem dos campos dos produtores (294 famílias entregaram colheitas de café), ou seja, supera a produção do próprio parque.
Dez toneladas serão destinadas à marca local (mercado doméstico) e o resto irá para exportação (mercado internacional).
Lá no alto, a estrada da montanha termina numa clareira que dá acesso a pé às cascatas de Morumbodzi e a viveiros de plantas de café, tudo sob o perfil do cume Gogogo, a 1.863 metros, suficiente para elevar o ar húmido do oceano Índico (na costa entre Marromeu e a cidade da Beira) e captar as chuvas.
A Serra da Gorongosa foi escolhida para o projeto “por causa da desflorestação” e consequente “diminuição do caudal dos rios que desaguam no lago Urema”, coração do parque da Gorongosa, que alimenta toda a biodiversidade – flora e fauna, do crocodilo ao leão.
Parte do café tem de crescer por baixo de espécies nativas, o que faz com que as famílias produtoras já estejam a preservar a floresta, para proteger o rendimento.
Sional dá um exemplo dessa “paixão” com um “grupo de elite” de quatro mulheres que, na calada da noite, evitava soldados para regar viveiros quando o projeto esteve à beira de um fim prematuro, entre 2014 e 2015.
Foi durante o último reacender de hostilidades entre as tropas governamentais e os guerrilheiros da Resistência Nacional Moçambicana (Renamo), antes do acordo de paz de 2019.
O conflito impediu o acesso da equipa do projeto aos viveiros durante mais de um ano: “pensámos que tínhamos perdido tudo”, conta Sional, sentado na mesma esteira de Fatiança Paulino e Vaida Fulanguene.
Ambas têm hoje as hortas preenchidas com as plantas de café que outrora protegeram.
“Já tínhamos feito muito e queríamos ver o resultado final”, conta Fatiança, na língua chiGorongosi, ao deixar claro que, naquela altura, “desistir não era solução”.
“Íamos com medo”, pela noite, mas “sabíamos a hora a que [as tropas] costumavam andar”, relata, por entre sorrisos.
O viveiro que regavam a 900 metros de altitude cresceu debaixo de uma estufa, mas hoje está totalmente coberto pela copa de uma floresta tropical, uma estufa natural, “um bom exemplo” do efeito do café a sarar o manto verde da serra.
Mais acima, as últimas linhas de plantas já estão em flor, anunciado uma nova temporada, num projeto em expansão com o apoio de doadores privados e da cooperação brasileira e portuguesa.
No sopé da montanha, ouve-se a fábrica de separação de café que dá emprego, enquanto uns 60 quilómetros a sudeste, Silvério Domingos, guia turístico do parque, serve o café a turistas que apreciam hipopótamos no lago Urema.
Tudo está ligado e a floresta é uma das peças que não pode desaparecer para que o equilíbrio dos ecossistemas se mantenha.
Pedro Muagura, administrador do Parque Nacional da Gorongosa, impulsionou o projeto porque a conservação da natureza “tem de ter o suporte da população” que deve sentir um impacto positivo – o oposto da visão com que muitos parques foram criados na época colonial, em que se mandavam sair as comunidades e os espaço eram vedados.
A inclusão e o desenvolvimento humano são a aposta e depois do café está a ser introduzido o caju e surgiu o projeto do mel – que em 2023 vai ter novo impulso com “uma compra superior de colmeias” para distribuir pelas comunidades.
“Um indivíduo que tenha 100 colmeias e esteja à espera de colher mel, não vai andar a fazer queimadas descontroladas e vai ter uma receita muito superior àquele que vai desmatar para plantar feijão ou milho”, ilustra.
Mel processado, mel em favos, bolos, culinária, há muito “mercado” para explorar.
A Gorongosa foi o primeiro parque nacional de Portugal em 1960, na época colonial, dilacerado entre 1977 e 1992 pela guerra civil que se seguiu à independência de Moçambique.
Em 2008, a fundação do milionário e filantropo norte-americano Greg Carr assinou com o Governo moçambicano um acordo de gestão do parque por 20 anos – prolongado-o por outros 25 anos em 2018 – que tem levado à sua renovação em várias frentes, com projetos sociais aliados à conservação e com o número de animais a crescer de 10.000 para mais de 102.000.