1. A articulação entre o conhecimento científico e a produção agrícola é a história de um sucesso cujo cerne foi ocupado pela agronomia científica, que começou a constituir-se em finais de setecentos e se consolidou desde meados do século
XIX. Foi um percurso marcado pelas orientações que lhe impri- miram os seus principais obreiros – os agrónomos que, nesse mesmo século, se constituíram como corpo profissional – as quais decorriam, naturalmente, do panorama oitocentista da ciência e da técnica, em que se incluem os postulados que estas tinham como assentes.
Num tempo em que a penúria alimentar ainda ameaçava frequentemente cidades e países, mesmo nas regiões mais desenvolvidas do planeta, aumentar a produção era o grande objectivo da agronomia. Os resultados foram eloquentes: no fi- nal do século XVIII uma família agrícola apenas conseguia pro- duzir um excedente de vinte a trinta por cento relativamente ao total de que necessitava para se manter e reproduzir. Um século depois, um activo agrícola, devidamente equipado no plano tecnológico, podia alimentar quatro pessoas. Cem anos mais tarde, nas últimas décadas do século XX, um trabalhador agrícola podia alimentar mais de sessenta pessoas utilizando as potentes tecnologias do modelo químico-mecânico de pro- dução agrícola – motomecanização, químicos agrícolas (adu- bos, herbicidas, fitofármacos, medicamentos para a sanidade animal), melhoramento de espécies vegetais e animais – que, entretanto, se tinham aperfeiçoado, consolidado e expandido. Os êxitos produtivos da agronomia permitiram mesmo trans- ferir a questão alimentar do lado da oferta para o da procura, ou seja, a produção agrícola deixou de ser, como aconteceu milenarmente na história da Humanidade, uma limitante para passar a ser uma possibilidade capaz de corresponder aos aumentos da procura (esta é agora o limite).
Esta evolução é indissociável da capacidade desenvolvida pela agronomia para controlar e artificializar o meio natural, num caminho em que se tomaram como assentes alguns postula- dos claramente enunciados por alguns dos principais autores do século XIX. Assim, relativamente à natureza, a agronomia devia “aguilhoar-lhe a actividade e encaminhar-lhe a acção” (Andrade Corvo, em 1880) ou “agigantar-lhe o poder” (Cin- cinato da Costa, em 1891). O programa da agronomia era, afinal, neste seu primeiro século, forçar e dominar a natureza com base numa ampla e aprofundada “imitação” dos seus processos (José Maria Grande, em 1849). Este programa foi conduzido sob a ilusão da perenidade da natureza – a que An- drade Corvo se referia como “inexauríveis tesouros” e à qual José Maria Grande aludia a propósito do solo: “este grande e indestrutível instrumento de produção” – e aceitando a for- mulação de Ferreira Lapa: a agronomia é “uma ciência geral”, por contraposição ao carácter local da agricultura.
2. Como hoje sabemos, de modo demasiado evidente, a natu- reza não é indestrutível e a sua fragilidade é agora uma das principais preocupações das sociedades. Estas consequências foram-se tornando evidentes desde a publicação, no início da década de sessenta, do livro “Primavera Silenciosa”. Neste es- tudo, a autora, Rachel Carson, evidencia a devastação da vida num lago e na bacia de terrenos que o circundava, na sequência da aplicação de um pesticida (DDT), para combater pragas que afectavam as culturas. A autora, ao concluir, face à análise que percorre o livro, não hesita em indicar que “nos encontramos agora numa encruzilhada”, onde se abrem dois caminhos “não igualmente belos”: “O que temos estado a seguir é de uma fa- cilidade que decepciona, uma estrada de primeiríssima ordem pela qual progredimos a grande velocidade, mas em que no fim está o desastre. O outro atalho – o caminho ‘menos frequenta- do’ – oferece no final a nossa única oportunidade para alcançar uma meta que assegure a conservação da nossa terra”2.
A questão ainda é esta. De qualquer modo, nas últimas décadas, verifica-se uma ampla aceitação de que é necessário procurar soluções para seguir pelo caminho “menos frequentado”, ou seja, para se estabelecer uma relação harmoniosa com a natureza.
A agronomia está também nesta “encruzilhada”, onde tem de procurar contribuir para conciliar a defesa da natureza com a produção necessária para alimentar a população mundial que se estima vir a ser de 9,7 mil milhões de pessoas em 2050, vivendo dois terços em cidades; em 2013, estes números, relativos à população, eram de 7,0 mil milhões e 50%. Para ilus- trar a resposta que se pede à agricultura, recorreu-se a dois cenários3 (cujo horizonte é 2050), assentes em pressupostos diferentes, mas que, com as suas diferenças, permitem evi- denciar alguns aspectos incontornáveis a considerar.
Um dos cenários admite um acentuado crescimento no con- sumo de produtos animais – acompanhando as tendências que hoje se desenham – e, na tecnologia, prevê “enverdecer a tendência atual”. Os resultados deste cenário indicam um cres- cimento: das necessidades alimentares de 58%; da área culti- vada de 4,5% e da produção/hectare de 1,01%/ano. No outro cenário, haveria um menor crescimento no consumo de produ- tos animais e admite-se passar a uma tecnologia mais soft. As necessidades alimentares cresceriam apenas 40%, mas a área dedicada às culturas alimentares aumentaria 23% e a produ- ção/hectare 0,4%/ano. Convém, depois desta breve apresenta- ção, destacar dois pontos: o grande aumento de produção que vai ser necessário conseguir, mesmo com uma evolução mais favorável do modelo alimentar; impõe-se, em qualquer dos ce- nários, um crescimento da produção/hectare/ano.
Do lado da natureza, numa primeira nota, convém destacar a evolução que se verificou no modo como é analisada: da ca- racterização do conjunto de elementos bióticos (plantas, ani- mais, micro-organismos) e abióticos (ar, água, solo, minerais) que a compõem, passou-se à compreensão do modo como, em cada local, estes elementos se caracterizam, mas tam- bém como convivem e interagem. Ou seja, passou a ler-se a natureza como o mundo dos ecossistemas. Actualmente, à urgência de travar a devastação destes, acresce a neces- sidade de contribuir para mitigar as alterações climáticas e de conviver com as suas consequências. Convém, a este pro- pósito, recordar que, no último meio século, as emissões de gases com efeito de estufa (GEE) resultantes da “agricultura, floresta e de outras utilizações da terra”, quase duplicaram e as projecções indicam uma tendência para aumentarem até 20504. Refira-se ainda que, de acordo com uma avaliação recente, o conjunto destes utilizadores da terra contribui com cerca de 21% para as emissões mundiais totais de GEE5.
Paralelamente, as principais consequências das alterações climáticas sobre a agricultura decorrem, nomeadamente, da subida das temperaturas, do stress hídrico e da multiplicação de acontecimentos extremos.
É assim, conciliando a alimentação da população com a sal- vaguarda da natureza, que a agronomia tem de se renovar na sua prática, na investigação e no modo como é ensinada, sabendo-se – como decorre dos dois cenários antes referidos – que esta conciliação tem de ser acompanhada por um au- mento de produção/hectare.
3. Tem ainda de se aceitar que não há nenhuma natureza original a reencontrar, mas que apenas nos confrontamos com o resultado de uma história longa: a interacção entre a presença e a actividade humanas e os ecossistemas com que foram co-existindo. E que hoje têm de se acautelar, não procurando os seus (inexistentes) contornos definitivos ou originais, mas considerando um percurso adaptativo para que se dispõe de algumas bússolas, que indicam de modo imperativo o caminho a efectuar.
Neste sentido, Alves et al. (2012), depois de destacarem que os ecossistemas não têm de se manter imutáveis, indicam o que há a proteger na evolução/transformação dos ecossistemas, ou seja, os “processos essenciais (capacidade de fotossíntese, ciclos de nutrientes e hidrológico” e os “elementos básicos (ri- queza das espécies, habitats e fertilidade do solo)”6. A que há a acrescentar, face às alterações climáticas, minimizar os GEE.
São orientações a ser aplicadas – e, de resto, só aplicáveis – acompanhando a evolução dos ecossistemas, nas suas di- nâmicas espaciais e temporais, e sendo ajustadas às carac- terísticas locais dos ecossistemas. Ou seja, não se trata de práticas gerais a aplicar a uma diversidade de situações, mas de grandes orientações a ajustar/acertar em cada local.
4. Nos pontos anteriores tomaram-se como referencial si- tuações em que se pressupõe continuidade na utilização e evolução dos ecossistemas. Nem sempre é, no entanto, este o panorama, dado que, por vezes, ocorrem grandes inter- venções humanas que afectam profundamente os ecossis- temas, nomeadamente os habitats e as espécies vegetais e animais, obrigando também a rever os critérios e o período da avaliação das consequências destas acções.
Algumas destas intervenções visam mesmo favorecer o poten- cial dos recursos naturais para a sua utilização pelo homem – o caso das obras de hidráulica agrícola – outras, como estradas e hidroeléctricas, têm outras finalidades, mas são também jus- tificadas pelas necessidades das comunidades humanas.
Relativamente a estes acontecimentos, há que recordar os ensinamentos do passado: saem espécies, mas acabam por se instalar outras nos novos ecossistemas que, entretanto, se consolidam. Saber se este balanço é “positivo ou negativo decorre de juízos de valor, não da ecologia…”7. Há mesmo o exemplo de um lago artificial – o lago de Der-Chantecoq – com 4.800 hectares, formado em França, para assegurar a regularização de um rio. Inicialmente, levantou grande celeu- ma, mas quatro décadas mais tarde tornou-se um reconhe- cido santuário da natureza, dado que passou a ser um local privilegiado para a passagem de aves migratórias8.
5. Dos elementos antes referidos como constitutivos do pensa- mento em que se fundou e desenvolveu a agronomia, só falta analisar o seu objectivo central – e, em muitas fases, único – produzir mais. Como já se referiu, foi um objectivo alcançado com grande sucesso e assente principalmente numa perspectiva unidimensional da relação factor/produto, ou seja, ava- liando qual o incremento de produção obtido com cada factor (adubo, fitofármaco…), mas ignorando “a natureza interactiva e sistémica dos efeitos dos diferentes factores de produção”, ou seja, escamoteando que as intervenções nos sistemas de pro- dução “devem ser analisadas como uma componente de um ecossistema (…) no seio do qual os organismos vivos interferem entre eles, respondem às variações do meio ao mesmo tempo que o modificam para se adaptarem a ele”9.
Também no melhoramento animal e vegetal – apontado com frequência como a causa principal do sucesso da agronomia – prevaleceu uma perspectiva unidimensional e quantitativa de obter indivíduos com alto potencial produtivo. Geralmen- te, a exploração deste potencial levava (exigia) a utilização acrescida de factores de produção, sendo difícil desligar os resultados obtidos deste acréscimo de factores, dado que “as investigações em eco-fisiologia mostraram que as eficácias de conversão dos recursos utilizados (eficiência da fotossínte- se, eficiência do azoto, eficiência da água…) não tinham pra- ticamente sido aumentadas pela selecção. Só os índices de rendimento (harvest index), definidos como a relação entre a biomassa colhida (grãos, tubérculos…) e a biomassa total da planta, aumentaram”10.
Paralelamente, não foram exploradas outras dimensões como, por exemplo, a capacidade para produzir em solos pobres em água, ou nalguns elementos minerais, ou o melhoramento de espécies animais para valorizarem recursos forrageiros de qualidade medíocre. Ou seja, partiu-se do melhoramento para impor a artificialização do meio, em vez de procurar melhorar espécies capazes de aproveitarem meios mais pobres.
6. As formulações e os pressupostos em que assentou a constituição da agronomia científica desde o século XIX fo- ram sendo erosionados. A natureza não é “indestrutível” nem “inexaurível”, bem pelo contrário, os ecossistemas são vulne- ráveis, e assegurar a sua sustentabilidade implica conhecer os seus componentes e dinâmicas. As consequências de forçar ou “aguilhoar” a natureza tiveram, com demasiada frequên- cia, resultados desastrosos; impõe-se agora produzir com a natureza e não contra a natureza, ou seja, produzir em “coni- vência com os ecossistemas”11, encaminhando-os – quando é caso disso – através de percursos adaptativos balizados pelas bússolas antes referidas. Com os ecossistemas no cerne da agronomia, esta torna-se forçosamente local/regional e aban- dona-se a convicção de Ferreira Lapa de uma agronomia geral e uma agricultura local: a agronomia também tem de se ajus- tar (e de ser praticada) às (em função das) características e dinâmicas locais dos ecossistemas.
Finalmente, o objectivo da produção, tal como foi concretizado, dificultou a apreensão das interacções no seio dos ecossistemas e menorizou as possibilidades do aproveitamento sustentável dos recursos naturais. Paralelamente, o melhoramento de espécies vegetais e animais, subordinado à linearidade da relação factor/produto, comprometeu a procura de soluções mais abran- gentes e capazes de tirarem partido de meios menos favoráveis.
7. A tecnologia e a condução dos sistemas de produção – me- diadores, por excelência, entre as formulações da agronomia e a sua aplicação na agricultura – têm um lugar central na alteração do paradigma da agronomia. Tanto pelo seu impac- to nos processos produtivos, como por exigirem um esforço importante da investigação no sentido de conciliar produ- ção e defesa da natureza. Para que este esforço seja conse- quente, é necessário que os resultados das pesquisas se vão traduzindo em conhecimento aplicável pela agronomia. Esta necessidade exige a articulação permanente, e instituciona- lizada, entre o investigador que produz o conhecimento e o engenheiro que identifica o problema a resolver e que depois vai aplicar aquele conhecimento.
Convém, de resto, esclarecer que já há muito conhecimen- to disponível que, com um adequado enquadramento insti- tucional, se poderia operacionalizar e aplicar. Há também já muitas indicações de práticas agronómicas que poderiam ser aplicadas com êxito, na linha do que se vem argumentan- do neste texto sobre a centralidade dos ecossistemas e das bússolas que podem orientar os seus processos adaptativos. Sucede, no entanto, que tem havido uma grande resistência em apoiar, ao nível da política agrícola, este tipo de medidas12, compatíveis com a sustentabilidade das práticas agrícolas, dados os interesses instalados que vêm beneficiando do sta- tus quo reinante de que, um dos maiores enviesamentos, tem sido avaliar as políticas pelos procedimentos (seguir determi- nadas normas nos sistemas de produção) e não pelos resul- tados obtidos. Esta orientação, como hoje é bem conhecido, tem levado a situações insustentáveis em relação à aplicação de dinheiros públicos, como é o caso de muitas das áreas hoje financiadas como agricultura biológica.
Ao passar do conhecimento produzido pela investigação para a exequibilidade da sua aplicação, tem ainda de se reflectir sobre as condições em que esta última decorre. Assim, por exemplo, tra- balhos de investigação13 efectuados sobre a videira mostraram que é possível utilizar variedades mais adaptadas a condições de escassez de água. Simultaneamente, concluiu-se também que, em momentos extremos, podem necessitar de rega e, portanto, têm de se assegurar as condições para que isto possa ocorrer14. Ou seja, a agronomia tem também de acautelar a continuidade (e possibilidade) do processo produtivo.
Ainda sobre as tecnologias. É um tema que tem de se encarar aceitando o conhecimento científico e evitando preconceitos e anátemas. Esta é uma herança que a agronomia científica deve guardar dos seus primórdios. Vem esta nota a propósito dos OGM, que em muitos países15 têm contribuído para a produção e a defesa do ambiente. São lições e experiências que não se podem ignorar, apesar da forte pressão de alguns sectores.
8. As transformações com que a agronomia se confronta im- plicam uma profunda alteração na sua prática. Produzir em “conivência” com os ecossistemas pressupõe atenção a cada local, não para aplicar um receituário geral, mas para analisar as possibilidades e as potencialidades de cada um deles, e para encaminhar e acompanhar os percursos adaptativos dos ecossistemas. Torna-se necessário mobilizar os saberes ne- cessários para estes procedimentos e analisar e acompanhar a sua aplicação em cada contexto.
Nada disto se poderá fazer sem uma nova agronomia no terre- no, tanto para encontrar e propor vias de utilização dos recur- sos naturais, como para apoiar tecnicamente as explorações agrícolas e difundir os saberes que vão ser necessários para concretizar uma agricultura sustentável, a longo prazo. Ou seja, arredada a aplicação das receitas factor/produto, torna-se incontornável conciliar a produção com a natureza. Torna-se, assim, necessário um enquadramento técnico-institucional da agricultura, que noutra fase se designou por extensão agrá- ria, mas que depois se tornou desnecessário porque a nature- za era considerada um mero suporte de uma técnica geral e manuseável de modo idêntico, em toda a parte. Agora, com o regresso da natureza – que antes tinha de se saber “aguilhoar”, depois passou a ser ignorada e actualmente tem de se apren- der a “cuidar” – impõe-se uma nova agronomia.
9. Esta nova agronomia tem também de incorporar que as suas propostas vão ser aplicadas pelos agentes – campo- neses, agricultores e outros – que utilizam directamente os recursos naturais. Para que esta articulação seja possível é necessário – além da difusão dos saberes, que já se referiu – que as propostas sejam compatíveis com os sistemas de pro- dução e com as lógicas económicas dos agentes, sejam estas o rendimento familiar dos que se apoiam principalmente no trabalho da família, o lucro do capitalismo agrícola ou, ainda mais um exemplo, a maximização do emprego de algumas cooperativas. Claro que a convergência entre as propostas da agronomia e a actividade produtiva pode ser tornada viável pelas políticas agrícolas, como já hoje sucede, nomeadamente com as políticas ambientais destinadas à agricultura.
As tecnologias químico-mecânicas deram graus de liberdade aos agentes económico-agrícolas em relação à natureza que cultivam, ou seja, não são obrigados a internalizar a harmonia com a natureza nas suas opções económicas16. Face às devas- tações entretanto ocorridas, permitidas por estes graus de liberdade, a harmonia com a natureza tem agora que ser re- feita pela nova agronomia. Mas também não será conseguida ignorando os sistemas de produção e as lógicas económicas dos agentes, mesmo nos casos mais extremos.
É o que se passa num caso limite, a Amazónia, onde o desmatamento para desenvolver actividades pecuárias ou agrícolas tem um grande impacto nos equilíbrios globais, nomeada- mente nas alterações climáticas. De qualquer modo, a sária defesa da floresta não pode ignorar as populações que a habitam e dela vivem, ou seja, tem de se abandonar o mito da Amazónia como uma floresta virgem17 e de se aceitar a urgência de uma política de desenvolvimento rural que concilie a defesa da floresta com os interesses da população
Publicado originalmente em Revista Ingenium