Desde há muitos anos que acompanho a evolução do sector do açúcar em Portugal. Quando se tomou a decisão de avançar com a fábrica de beterraba sacarina, penso que o trabalho que então desenvolvi teve uma contribuição significativa para que os apoios públicos necessários para a sua concretização devessem sido desbloqueados. Posteriormente, tenho acompanhado toda a evolução da OCM do Açúcar na qualidade de Presidente da Associação dos Refinadores de Açúcar de Portugal (ARAP) e, nesse contexto, manifestei várias vezes, oralmente e por escrito, a propósito da reforma da PAC de 2003, que, na minha opinião, a DAI devia ser convertida numa unidade de produção de bioetanol a partir da beterraba sacarina e não numa fábrica de refinação de açúcar de cana, o que a posição assumida pela GALP, com o apoio do Governo Português da altura, tornou inviável.
É, neste contexto, que se inserem as seguintes reflexões sobre a Resolução da Assembleia da República, aprovada em 2 de Março de 2012, que “recomenda ao Governo que tome medidas que permitam relançar a cultura da beterraba sacarina em Portugal”.
Portugal optou em 2005 por transformar a sua fábrica de produção de açúcar de beterraba localizada em Coruche (DAI) numa unidade de refinação de açúcar de cana. Esta decisão resultou da reforma da OCM do Açúcar que aprovou uma redução do preço mínimo a pagar pela indústria aos produtores de beterraba de 45,4 €/ton na campanha de 2005/06 para 26,3 €/ton a partir da campanha 2009/2010, redução esta que tornava inviável a produção desta cultura em Portugal.
Esta decisão de abandonar a quota de 69,7 mil toneladas de açúcar branco de beterraba a que Portugal tinha então direito, beneficiou, nas campanhas 2006/07, 2007/08 e 2008/09, de uma ajuda compensatória total de 43,8 milhões de euros que foram repartidos da seguinte forma:
14,9 milhões de euros de ajuda à restruturação da DAI;
14,1 milhões de euros de ajuda à reestruturação daas explorações agrícolas produtoras de beterraba;
14,8 milhões de euros de ajuda à diversificação quer industrial, quer da produção agrícola.
Neste contexto, fiquei surpreendido com a recente iniciativa tomada pela Assembleia da República, junto do Governo Português, para que este tome medidas que permitam relançar a cultura da beterraba sacarina em Portugal, aproveitando, para o efeito, as negociações em curso no contexto da PAC pós 2013 (Resolução da AR n.º 4 de 2012).
São os seguintes os principais argumentos apresentados como justificação desta iniciativa:
a cultura da beterraba sacarina é uma alternativa bastante vantajosa para os agricultores portugueses;
o relançar desta cultura vai contribuir para o aumento da produção agrícola nacional;
a substituição da produção de açúcar de cana por açúcar de beterraba constituirá um contributo para o aumento da nossa auto-suficiência alimentar.
Analisemos criticamente cada um destes argumentos.
Independentemente do indiscutível interesse agronómico da cultura da beterraba, a sua introdução nas rotações atualmente praticadas nas áreas de regadio das regiões do Ribatejo e do Alentejo, só ocorrerá se ela for economicamente mais competitiva do que as restantes culturas alternativas, das quais importa destacar, o milho para grão, por ser aquela que, na grande maioria dos casos, iria ser substituída no caso da reintrodução da cultura da beterraba em Portugal.
Após conversar com produtores agrícolas com larga experiência nestas duas culturas, cheguei à conclusão que uma análise comparativa das respectivas competitividades deveria ser baseada numa relação de custos de produção média, em três níveis diferentes de produtividade comparáveis para a beterraba e para o milho e em três níveis diferentes para o preço no produtor do milho.
Os resultados obtidos com esta análise comparativa levam-nos a considerar três diferentes níveis de preços limiar para a beterraba sacarina:
30,8 €/ton para os solos de nível de produtividade mais elevados (100 ton/ha e 15 ton/ha para a beterraba e o milho, respectivamente)e para um preço do milho grão relativamente baixo (180€/ton);
35,3 €/ton para os solos de produtividade intermédia (90 ton/ha para a beterraba e 14 ton/ha para o milho grão) e para um preço médio do milho grão (200€/ton);
42,0 €/ton para os solos com níveis de produtividade mais reduzidos (inferiores a 80 ton/ha para a betrerraba e a 13 ton/ha para o milho grão) e para um preço do milho grão relativamente mais elevado (220€/ton).
Importa, neste contexto, sublinhar que a maior parte da área disponível para assegurar o abastecimento de uma unidade como a da DAI corresponde aos solos com níveis de produtividade intermédia e menos elevadas em causa, o que nos permite afirmar que, muito provavelmente, o relançar da produção da beterraba sacarina em Portugal de forma sustentável irá exigir que a respectiva industria esteja em condições de garantir no futuro preços no produtor da ordem dos 40€/ton.
Será que os preços no produtor da beterraba sacarina nos países da UE-27 aonde ela se continuou a praticar atingiram nestas últimas campanhas valores que nos permitam concluir da competitividade futura desta cultura em Portugal no contexto dos preços limiares em causa?
De acordo com a informação obtida, o preço praticado desde a campanha de 2009/10 na maioria dos EM a UE-27 correspondem ao preço mínimo estabelecido pela reforma da OCM do Açúcar em 2005, ou seja, 26,3€/ton.
Importa, no entanto, sublinhar que, aproveitando o elevado nível de preço que o açúcar branco atingiu nas duas últimas campanhas, as indústrias produtoras de açúcar de beterraba ofereceram, em alguns EM, preços mais elevados aos respectivos produtores:
33,7 €/ton¸na campanha 2009/10 e 33,2 €/ton na campanha 2009/10 e 33,2€/ton na campanha 2010/11 no caso da British Sugar (Reino Unido);
entre 29 e 32 €/ton no caso das fábricas italianas, sendo estes 3 a 5 €/ton adicionais assegurados ou directamente ou indirectamente através de apoios por hectare ou de fornecimento de inputs a preços inferiores aos de mercado.
É verdade que no caso de Espanha os preços no produtor atingiram na última campanha, os 40,3 €/ton, mas não é menos verdade que este valor resultou da existência de ajudas à produção autonómicas ou nacionais de cerca de 10€/ton (estas últimas financiadas pelo FEOGA ao abrigo do Artigo 68), o que faz com que o preço no produtor sem ajudas tenha sido, apenas, de cerca de 30€/ton.
Neste contexto quem é que será capaz de arriscar os investimentos industriais e agrícolas indispensáveis ao relançada produção da beterraba sacarina em Portugal, para não falarmos da obrigação de fazer chegar a Bruxelas os 43,8 milhões de euros de que industria e produtores agrícolas portugueses beneficiaram como contrapartida à respectiva cedência de quota?
Argumentarão os apoiantes das recentes iniciativas que o Governo Português deverá fazer “diligências, em termos comunitários e nacionais, para dotar a fábrica de Coruche dos meios necessários para voltar a laborar beterraba sacarina”, fundamentando tal recomendação no que consideram ser a sua contribuição para:
a melhoria do rendimentos dos produtores agrícolas portugueses;
o crescimento da produção agrícola nacional;
o aumento da nossa auto-suficiência alimentar.
Não sei o que se entende por “meios necessários”, mas imagino que signifique:
uma transferência para Bruxelas dos 43,8 milhões de euros de apoios à reestruturação e diversificação associados com o abandono da quota, ou uma decisão de Bruxelas de prescindir do referido montante, uma e outra pretensão que me parecem, no mínimo, ingénuas no contexto macroeconómico e financeiro actual;
a criação no contexto da PAC pós-2013 de um pagamento ligado à produção de beterraba de 6 a 9 milhões de euros por ano, o que face às perspectivas de redução futura deste tipo de pagamentos de 120 milhões de euros/ano, ainda, em vigor em 2013, para, um máximo de 60 milhões de euros/ano no período 2014-2020, irá entrar em conflito aberto com as necessidades que outros sectores atualmente em produção irão ter deste tipo de apoios;
a canalização de verbas específicas de apoio a novos investimentos na DAI e nas unidades produtivas que venham a dedicar-se no futuro à produção de beterraba, cujo grau de prioridade face a outros tipos de investimentos produtivos é no mínimo discutível.
Neste contexto, sou de opinião que uma decisão favorável no sentido da criação dos “meios necessários” em causa só se justificará no caso da ocorrência futura de acréscimos muito significativos nos benefícios empresariais, sectoriais e nacionais deles decorrentes.
Quanto aos benefícios adicionais esperados do ponto de vista das explorações agrícolas portuguesas, parece-me evidente que eles serão nulos, uma vez que os ganhos de rendimento líquido alcançáveis com a introdução da beterraba, iriam, quanto muito, igualar as perdas resultantes da não produção de milho ou qualquer outro tipo de cultura alternativa.
Do ponto de vista do crescimento potencial da produção agrícola em Portugal, a conclusão é exactamente a mesma uma vez que os aumentos de produção da beterraba irão ser alcançados a custo de reduções na produção de milho, com a agravante de se estar a incentivar uma substituição de uma cultura que não necessita de ajudas ligadas à produção (o caso do milho) para ser competitiva, por outra (caso da beterraba) cuja competitividade depende deste tipo de transferências de rendimento.
No que diz respeito ao potencial impacto positivo do relançamento da produção de beterraba sacarina sobre a auto-suficiência alimentar em Portugal, a conclusão é a mesma, ou seja, que dela não resultará nenhum benefício adicional. De facto, a tese apresentada, é de que se uma parte do açúcar branco que passarmos a produzir for de açúcar de beterraba, vai ser necessário importar menos ramas de açúcar para a refinação de açúcar branco de cana e, consequentemente, irá aumentar o nosso grau de autoaprovisionamento em açúcar. O que esta tese esquece, é que associado com o aumento da produção de açúcar de beterraba irá estar uma redução equivalente na produção de milho ou de outras culturas alternativas e, consequentemente, um aumento das respectivas importações (ou redução das respectivas exportações) o que anula o pretenso impacto positivo sobre a auto-suficiência alimentar em Portugal.
Partindo do princípio de que a minha análise está correcta, sou de opinião que o enfoque central da nossa posição negocial no contexto da reforma da OCM do Açúcar para o período pós-2013 não deverá ser o do relançamento da cultura da beterraba em Portugal, mas antes, o reforço dos mecanismos que assegurem um abastecimento adequado das unidades de refinação de açúcar de cana na UE em geral e em Portugal em particular.
De facto, se tal reforço não vier a ser alcançado, não só não iremos ter condições para substituir uma parte do nosso consumo interno de açúcar branco de cana por açúcar branco de beterraba, como corremos um sério risco de virmos a assistir ao encerramento das nossas indústrias de refinação de açúcar de cana e, consequentemente, passarmos a depender totalmente de importações de açúcar branco. Esta situação seria bastante mais negativa do que a actual em que, com base em importações de ramas de açúcar, geramos valor acrescentado e emprego, asseguramos o total abastecimento do mercado interno e, ainda, contribuímos para o aumento das exportações.
Francisco Avillez
Professor Emérito do Instituto Superior de Agronomia da Universidade Técnica de Lisboa