Pastam ovelhas no remoto “cantinho sagrado” onde, ao contrário do estabelecido no contrato assinado, o consórcio construtor da linha de alta velocidade (AVAN Norte) quer pôr a estação de Vila Nova de Gaia, ameaçando vivências, agricultura e indústria.
Numa manhã abençoada pela chuva que já fazia falta, Arnaldo Magalhães, de 62 anos, já tinha ido buscar o seu rebanho quando falou à Lusa sobre o projeto que pode abalar o seu sustento: a proposta de alteração da localização da estação de alta velocidade de Vila Nova de Gaia de Santo Ovídio para Guardal de Cima, em Vilar do Paraíso.
“Faço isto desde sempre e queria continuar a fazer, só se não for possível, mas não sou eu que vou decidir isso, não é?”, conta o agricultor junto ao terreno que faz parte da Reserva Agrícola Nacional e Reserva Ecológica Nacional que o consórcio AVAN Norte (Mota-Engil, Teixeira Duarte, Alves Ribeiro, Casais, Conduril e Gabriel Couto) quer transformar numa estação para comboios de alta velocidade, ao contrário do previsto no contrato assinado com o Estado.
Para o agricultor que trabalha a terra desde “novinho”, com 10 ou 11 anos, além de tratar do gado caprino e bovino, a sua vida consiste em “lavrar os campos, semear erva, semear o milho na altura dele, batata, agora as hortaliças, algum vinho”, refere, advertindo que “não são vinhos de qualidade” como outros na região Norte.
“Se isto for mesmo avante fico triste, não vou ficar contente. Nem eu, nem ninguém que mora aqui”, remata.
É o caso de Joel Silva, sobrinho de Arnaldo Magalhães e morador na zona de Guardal de Cima desde sempre, que confirma a “ansiedade” perante “não saber o que vai acontecer” e o facto de as populações já estarem habituadas a viver naquela comunidade.
“Tivemos uma abordagem através de um indivíduo que diz que faz parte do consórcio. Não sei se faz parte ou se é uma empresa contratada à parte. Anda a contactar todas pessoas – neste caso todas as casas e empresas – que estão dentro dessa linha de probabilidade onde passa a linha de alta velocidade, mas essa pessoa também ela própria não sabe, não tem a certeza se vai ser aqui ou não”, diz à Lusa o morador.
No centro da questão está uma proposta que o consórcio fez em abril à Câmara de Gaia (à data liderada por Eduardo Vítor Rodrigues [PS]), após várias reuniões com responsáveis urbanísticos, de uma nova localização da estação no concelho, ao invés de Santo Ovídio, que continua a ser a única localização oficialmente prevista no contrato de concessão assinado já depois, em julho, entre o Estado (através da Infraestruturas de Portugal) e o consórcio AVAN Norte.
Com a eventual relocalização da estação para a periferia de Gaia, em Vilar do Paraíso, também as empresas da zona industrial de São Caetano, imediatamente a sul de Guardal de Cima, se constituíram numa associação e já denunciaram a “chantagem” do consórcio quanto à relocalização da estação, que poderia impactar as suas instalações à superfície.
De uma zona com duas linhas de metro, a nova estação passaria para uma zona sem acessibilidades já construídas e sem a garantia, atualmente, de ligação ao metro, embora o consórcio tenha proposto, em abril, estender a linha Rubi até à nova estação.
“Olhamos para isto com uma perplexidade enorme. Isto não faz qualquer tipo de sentido, só mesmo em Portugal, porque quer dizer: o projeto já prevê, desde 2022 salvo erro, que a estação esteja projetada a 60 metros de profundidade e depois em 10 ou 13 quilómetros de túnel para evitar as tais demolições e, na parte ambiental, toda esta alteração”, lembra o morador, demonstrando conhecimento do dossiê.
Para Joel Silva, tudo isto “não dá para entender”, “é uma confusão” e “ninguém está a compreender”.
“O consórcio, quando concorre para ganhar a obra, já sabia de antemão que a estação seria em Santo Ovídio e que seria em túnel. Como é que eles concorrem, vencem e nem sequer fazem os testes em Santo Ovídio, nem nada? Começam a fazer um ‘projeto B’ à maneira deles, sem ter nada a ver com o projeto inicial, não dá para entender, não é?”, desabafou.
José Jorge, reformado de 82 anos, já não está numa idade de se poder “chatear com nada” após alguns desgostos pessoais, levando “uma vida mesmo muito chata”.
“O que eu queria, meu amigo, é que não me deitassem a casa abaixo. É isso a minha resposta. Porque me custou tanto na minha vida e com as chatices que a gente tem, desgostos desta vida, e agora, no fim da minha vida – sim, porque eu tenho 82 anos, vou durar, vá lá, mais um, dois ou três anos – e querem-me deitar a casinha abaixo”, lamentou, mesmo ainda não tendo toda a informação disponível.
Contando que uma vez lhe apareceu um técnico ligado ao consórcio a querer falar consigo e saber se estava tudo bem, o idoso só pôde responder “que está tudo mal”.
“Uma pessoa andou uma porrada de anos a pagar a casinha, e agora vêm umas pessoas que nem sei quem são elas e querem arrumar com esta porcaria. Não está bem”, vincou.
A ansiedade causada pela incerteza em torno do projeto da linha de alta velocidade contrasta com o “muito sossego” e o “ar puro” proporcionado por aquele resquício rural gaiense, entrincheirado entre uma zona industrial e o centro urbano consolidado.
“Com a idade que tenho, preciso de sossego e querem-nos tirar esse sossego. Ar puro… é um cantinho sagrado. Para mim e para todos aqui. Para todos, é um cantinho sagrado. A gente vive aqui, de vez em quando vou dar uma voltinha, converso com o lavrador e tal… é o fim da vida”, conclui José Jorge.











































