Nas últimas Notas da Semana, refletimos sobre a importância do que estava previsto para esta semana, na sequência de dois momentos marcantes para a União Europeia: no dia 14 de julho, o Conselho dos Ministros dos Negócios Estrangeiros, com a análise das tarifas impostas pelo Presidente Trump, e no dia 16, a apresentação da proposta da Comissão Europeia sobre o Quadro Financeiro Plurianual. Em ambas as situações, o mesmo sentimento: choque.
Quanto às tarifas, a Administração norte-americana surpreendeu tudo e todos durante o fim de semana, com a imposição de 30% e um prazo negocial até ao próximo dia 1 de agosto. Do ponto de vista de Trump, o acordo seria a carta recebida em Bruxelas. Von der Leyen promete uma resposta firme e à altura da defesa dos interesses europeus, com uma retaliação que poderá atingir os 72 mil milhões de euros. A União Europeia continua a negociar e, tanto quanto sabemos, pelo rumo dos acontecimentos, é possível chegar-se a um acordo. Caso contrário, a partir de 6 de agosto, estaremos perante uma escalada comercial entre os Estados Unidos e a União Europeia, com os inevitáveis danos nas relações transatlânticas e que poderão minar as relações na NATO. Certezas? Nenhumas. Para já, a habitual imprevisibilidade.
Entretanto, outro sinal igualmente relevante, uma nova viragem na guerra da Ucrânia com a disponibilidade dos EUA para ceder armas à Ucrânia (pagas pelos europeus), para impor tarifas à Rússia num prazo de 50 dias se não ceder nas negociações de paz e, o mais impactante, para implementar penalizações aos países que negociarem com os russos, o que poderá afetar as trocas comerciais com a China, India e Brasil, essencialmente os BRICS. Esta viragem tem o potencial de impactar o comércio mundial e, certamente, a estabilidade, cada vez mais reduzida, das cadeias de abastecimento à escala global. Pelo meio, uma União Europeia desalinhada, com dificuldades em impor o 18º pacote de sanções à Rússia.
Foi neste cenário perturbador que aguardámos pela proposta da Comissão para o Orçamento de longo prazo, para o período de 2028-2034.
Desde há algum tempo, sobretudo desde a última reunião do EBAF, que se antevia que o orçamento da PAC (Política Agrícola Comum) iria ser reduzido, que seria criado um fundo único para a agricultura e coesão, em nome da simplificação, da flexibilidade e de maior financiamento. Já se sabia que as questões da defesa e da Ucrânia seriam centrais no Quadro Financeiro Plurianual, mas tinham sido inúmeras as reações contrárias a estes pontos de vista, desde logo pelos Ministros da Agricultura e pelo Parlamento Europeu. Aliás, Portugal até foi um dos 14 signatários de uma carta, enviada à Presidente da Comissão Europeia, que rejeitavam cortes na Política de Coesão e uma gestão centralizada dos fundos.
Ficámos assim a saber, no dia 16 de julho, que a Comissão Europeia preparou um “orçamento ambicioso” para uma Europa mais forte no período 2028-2034, que permite responder aos desafios da Europa, que “reforça a sua independência”, porque está em causa “uma nova era”. Um orçamento que se situa nos 2 biliões de euros (contra os 1,2 biliões do quadro atual), que inclui mais contribuições nacionais e três novos impostos. De acordo com Úrsula von der Leyen, teremos um orçamento mais inteligente e mais incisivo, que beneficia os cidadãos e as empresas. O problema é que enquanto cresce globalmente, o orçamento destinado à PAC confronta-se com um corte em mais de 20%, passando dos atuais 386 mil milhões de euros para 296 mil milhões de euros, para além de ser uma via aberta para a renacionalização da PAC, o que sempre repudiámos porque gera distorção de concorrência e desigualdades entre agricultores e agriculturas, quando deveria reforçar a coesão.
Perante esta confrontação aberta da Comissão Europeia para com o Setor, os últimos dias foram marcados por protestos dos setores agrícola e agroalimentar, com os sentimentos de traição, abandono, desilusão e desencanto bem visíveis. Até há não muito tempo, na sequência do Diálogo Estratégico, e já apresentada a nova Visão sobre o futuro da Agricultura e Alimentação, o objetivo era dispormos de um setor estratégico, atrativo para os jovens, um pilar na construção europeia. Como vai ser possível afirmar e honrar os desafios e compromissos perante estas novas prioridades? Onde está o orçamento à altura das ambições? Como se vai posicionar agora o Comissário Christophe Hansen? Afinal, parecem ter razão os que afirmam que a Comissão acabou por concretizar os ideais do ex-Comissário (de má-memória) Frans Timmermans, num contexto político que tinha tudo para ser diferente.
Um ponto de partida demasiado ofensivo para quem tem de alimentar a Europa.
Reagindo aos protestos de milhares de agricultores em Bruxelas, a Presidente da Comissão Europeia prometeu reforçar as verbas para o setor, afirmando que a Agricultura sairá reforçada e que estão salvaguardados os pagamentos diretos. E o Desenvolvimento Rural? Tudo demasiado opaco, pouco transparente.
Aqui chegados, é certo que a Comissão vai ter pela frente uma longa batalha, com os agricultores, com alguns Estados-membros (a França vive um clima de austeridade e a Alemanha é contra este orçamento), com a opinião pública (e publicada) e com o Parlamento Europeu.
Serão dois anos de forte disputa com o Conselho e com o Parlamento, que podem ser transformados num “inferno mediático”, fragilidade e divisões, com as organizações agrícolas e agroalimentares a lutarem, justamente, e com todas as armas que estiverem legalmente ao seu alcance, para se posicionarem contra a nacionalização da PAC e para exigirem, no mínimo, a manutenção dos apoios, venham de onde vierem.
Alguém compreende que sejam aumentados (e bem) os gastos com a defesa e a segurança, enquanto se reduzem as verbas para a Agricultura e Alimentação e quando é sabido que a Alimentação é um dos pilares da segurança, de independência e da soberania de qualquer Nação e obviamente da União Europeia?
Uma vez mais, a Europa a dar mais um tiro no pé, sem que se perceba porquê e para onde nos quer levar. Ainda vamos a tempo de arrepiar caminho. Neste contexto de desconstrução e populismos, se este rumo não for invertido, as consequências podem ser dramáticas.
Jaime Piçarra
Secretário-Geral da IACA
Fonte: IACA
E passados 90 dias, como estamos? – Jaime Piçarra – Notas da semana